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Minggu, 18 September 2011

BAHASA PERSATUAN



* Agradeço à Fapesp pela bolsa que me permitiu desenvolver a pesquisa para este artigo e também
a Janice Theodoro, minha supervisora de pós-doutorado junto ao Departamento de História da
Universidade de São Paulo.
1 Ver o clássico do cientista inglês do século XIX, Alfred Russell Wallace, The Malay Londres, Periplus Library of the Indies Series, 2000. Foi Wallace que estabeleceu a imagem do
arquipélago como imenso reservatório biológico de caráter único e singular no mundo.
2 Essas informações encontram-se no site do SIL: www.ethnologue.com, no link “Indonesia” do
“Country Index”. Só a província da Papua Ocidental (antiga Nova Guiné Ocidental ou Irian Jaya)
tem 265 idiomas (e índice de diversidade lingüística de 0,94%). O índice de diversidade é calculado
levando-se em conta o número de línguas, o número de falantes de cada uma e a população total.
O Brasil aparece como tendo 234 línguas, 42 das quais extintas. O índice de diversidade brasileiro
é, contudo, apenas 0,03%. Isto se deve ao fato de que o país é basicamente uma nação monolíngüe.
A Indonésia surgiu como nação independente em 1945. País totalmente
formado por ilhas – cerca de dezesseis mil –, sem nenhum território continental,
é o maior arquipélago do mundo. Desde o século XIX o arquipélago
– então denominado de Arquipélago Malaio, Arquipélago Índico ou,
ainda, Insulíndia – habita a imaginação, inicialmente a ocidental, como
um vasto repositório de variedade biológica.1 Nessa variedade, incluiu-se
desde o início também a variedade humana, representada não só pelas
diferentes culturas, povos ou etnias, como também pela imensa variedade
lingüística. O Summer Institute of Linguistics conta 731 idiomas na
Indonésia, a esmagadora maioria falada por poucas pessoas. O índice de
diversidade lingüística do arquipélago é 0,83, numa escala de 0 a 1.2 Con
tudo, interessantemente, a República Indonésia tem um único idioma
oficial: Bahasa Indonesia ou “língua indonésia”, também denominado
às vezes de bahasa persatuan ou língua de unidade nacional. Outra característica
interessante do estado-nação pós-colonial é o fato de que a
língua dos antigos colonizadores, o neerlandês, é praticamente uma língua
morta nas ilhas, a despeito do fato da ocupação da primeira ilha
pelos neerlandeses na região – a ilha de Ambon ou Amboína – datar de
1605.3
A Indonésia não é a única ex-colônia neerlandesa que não fala
neerlandês. Afora o Suriname, cuja língua oficial e da classe média urbana
é o neerlandês, e que só ficou independente em 1975, nenhuma excolônia
fala neerlandês. Nem mesmo Aruba e as Antilhas Neerlandesas
ou Holandesas, que ainda fazem parte do Reino dos Países Baixos, têm
o neerlandês como língua de uso corrente, embora seja idioma oficial em
ambos os países. Na África do Sul, apesar da presença de muitos descendentes
de colonos do tempo da Companhia das Índias Orientais holandesas,
a língua falada localmente não é neerlandês, mas sim um parente
próximo, o afrikaans.4 Em outros lugares – Ceilão, Coromandel,
Bengala, Guiana, Maurício, São Jorge da Mina, Nova York, Pernambuco,
etc – tampouco restou um grupo que fale neerlandês.5 Essa situação tem
a ver com uma característica peculiar ao colonialismo neerlandês: seu
caráter talvez ainda mais intensamente comercial do que o do colonialismo
3 O indonésio é geralmente falado como segunda língua, sendo língua materna apenas de uma
minoria de habitantes. O site do Ethnologue calcula que entre 75% e 80% da população saiba o
idioma. Em 1989, 42% da população falava também o javanês, segundo idioma mais usado no
país. Ao contrário do Brasil, o monolinguismo é mais exceção do que regra na Indonésia, onde
demograficamente predominam não os descendentes de imigrantes e escravos, mas os povos
indígenas ou autóctones.
4 Além, naturalmente, de vários outros idiomas. Entre 1910, ano da criação da União da África do
Sul, e 1994, houve dois idiomas oficiais (inglês e neerlandês, este último substituído pelo afrikaans
a partir de 1925); a partir de 1994, há onze idiomas oficiais (inglês, afrikaans e nove idiomas
africanos como o zulu, xhosa, tsuana, etc).
5 A República da Guiana, ex-colônia britânica formada em 1834 a partir da união de três antigas
colônias neerlandesas (Demerara, Essequibo e Berbice), possui um pequeno grupo de pessoas
que fala Berbice Dutch, um crioulo de base léxica neerlandesa. Também no Caribe, as Ilhas
Virgens Americanas (compradas à Dinamarca em 1917) possuíam um crioulo local de base léxica
neerlandesa que, contudo, tornou-se extinto há alguns anos. As ilhas neerlandesas propriamente
ditas falam papiamento (crioulo de base léxica hispano-portuguesa usado em Aruba, Curaçau e
Bonaire) ou inglês (nas ilhas de Barlavento).
britânico, aliada à ausência de uma idéia de império. Em geral, imperou
certa indiferença quanto à difusão da língua metropolitana nas colônias.
Na Indonésia, especificamente, essa relativa indiferença levou à
criação de uma situação lingüística altamente plural e também peculiarmente
complexa. Em Batávia – nome colonial de Jacarta –, por exemplo,
durante os séculos XVII e XVIII, imperou o português do oriente como
língua franca, apesar do porto nunca ter sido estabelecimento português.
A língua havia surgido ali como conseqüência da vinda de muitos escravos
indianos lusófonos que mais tarde, ao tornarem-se forros, difundiram
o idioma. O malaio já era muito importante nessa época, também
como língua franca, e passaria a ser a língua mais falada a partir do
início do século XIX, com o desaparecimento do português em Java,
embora continuassem a existir comunidades que falavam esse idioma em
outras partes do arquipélago. Freqüentemente somente os homens da elite
neerlandesa – os altos funcionários da Companhia das Índias – falavam
o neerlandês – no escritório ou entre si. Em casa, imperava o português ou
o malaio, e nas ruas da cidade vários outros idiomas – além do malaio e do
português, o chinês, o javanês, várias outras línguas do arquipélago e também
várias línguas européias, já que o baixo escalão da Companhia era
recrutado entre alemães, escandinavos e outros protestantes.
Desde uma época remota, antes mesmo da presença européia, o
malaio havia-se imposto, pelo menos nas costas, como língua franca do
comércio e de contato em muitas partes do arquipélago e da Península
Malaia. No século XIX, a crescente administração colonial passou a
utilizar a língua como língua corrente, junto ao neerlandês. O javanês
também poderia ser utilizado, assim como outras línguas. Originalmente
falado no arquipélago de Riau, à entrada do Estreito de Malaca, em
pequenas ilhas vizinhas, e também na Península Malaia e na costa leste
sumatrana, o idioma terminou se difundindo por toda a região. Ao empregar
o malaio, a administração colonial revelava assim um pragmatismo
desprovido de um projeto formal ideológico: era a língua mais comum.
Além do mais, a maioria da população que a usava, falava-a, então como
hoje, como segunda língua, já que é língua materna de apenas uns poucos.
Ao contrário de outras línguas locais e do resto da Ásia, o malaio
sempre teve fama de ser um idioma fácil e acessível, o que o tornava
ainda mais atraente, tanto para a população autóctone como para os
colonizadores. Na ausência de uma idéia de império clara, o malaio terminou
ocupando o lugar que foi, em outros contextos coloniais, o de
uma língua européia associada a uma corte metropolitana, como no caso
do idioma inglês na Índia Britânica.
Contudo, na segunda década do século XX, com o surgimento do
nacionalismo entre os “nativos” ou autóctones do arquipélago, e com a
expansão do sistema escolar colonial, a questão do idioma de ensino – e,
associada a ele, a questão do idioma nacional – tornou-se cada vez mais
premente. Desde o início, a questão idiomática – discutida primeiramente
no âmbito do ensino na colônia – tornou-se também uma questão de
identidade nacional. Determinar o idioma veicular nas escolas era também
determinar a forma e conteúdo do futuro estado-nação pós-colonial
num arquipélago vastíssimo e extremamente variado, onde qualquer forma
de unidade constituía um grande e espinhoso problema conceitual, para
não dizer logístico. As discussões sobre o(s) idioma(s) se tornaram assim
inseparáveis das discussões relacionadas ao nascente nacionalismo do arquipélago,
assim como da idéia mesma de uma nação insular. Além do
mais, a questão tornou-se importante nas tentativas do próprio colonialismo
neerlandês de redefinir seu papel e âmbito num mundo onde o nacionalismo
asiático de várias estirpes era um fenômeno cada vez mais comum. É
nesse contexto que as idéias de Surya Ningrat, ou Ki Hadjar Dewantara,
são importantes aqui. Pedagogo javanês, foi conselheiro tanto do governo
colonial e dos nacionalistas como, mais tarde, do próprio estado-nação
independente. Talvez mais que ninguém, dentro ou fora da administração
colonial, neerlandês ou não, ele tenha sido o grande visionário e planejador
não só do futuro lingüístico do arquipélago como também da própria idéia
de nação ali. Embora suas idéias não fossem propriamente originais, foi
um pioneiro na sua elaboração dentro de um arcabouço articulado. A partir
da herança errática e casual do colonialismo, e da imensa diversidade
do arquipélago, ele construiu um caminho para pensar o estado-nação.6
6 Sobre Surya Ningrat/Ki Hadjar Dewantara, ver Kenji Tsuchiya, Democracy and Leadership.
The Rise of the Taman Siswa Movement in Indonesia, Honolulu, University of Hawaii Press,
1987, p. 20 e passim; e Kees Groeneboer, Weg tot het Westen, Leiden, KITLV, 1993, pp. 410-
412. Surya Ningrat/Ki Hadjar Dewantara, filho de nobres javaneses, viveu de 1889 a 1959.
Em 1916 celebrou-se em Haia o primeiro “Congresso de Educação
Colonial”, reunindo especialistas do arquipélago e da metrópole no primeiro
esforço conjunto desse tipo. A partir de 1900, com a entrada de um
número pela primeira vez significativo de “nativos” e “orientais estrangeiros”
(chineses) no sistema escolar, a questão educacional se tornara cada
vez mais importante na colônia, a ponto de grande parte do debate político
colonial girar em torno dela. Seu parecer ou recomendação (prae-advies)
para o Congresso chama-se “Qual lugar devem tomar no ensino as línguas
autóctones, por um lado, inclusive o chinês e o árabe, e, por outro lado, o
neerlandês?”7 Nesse parecer, Surya Ningrat descreve a “questão idiomática”
(taalkwestie) na colônia em relação ao intrincado e complexo sistema
escolar colonial. Faz uma descrição interessante e detalhada das opiniões
correntes a respeito da questão na colônia na época, e em seguida dá sua
própria opinião, fundamentando-a com razões práticas. Em seu texto, Surya
Ningrat – que escreve em um neerlandês castiço e perfeitamente correto –
analisa todas as correntes de opinião da época e constrói uma visão própria,
mas muito pragmática do problema.
Em primeiro lugar, nota que não se pode realmente falar de “sistema”
escolar índico (isto é, da Índia Neerlandesa). Não há realmente,
segundo ele, um “objetivo preciso e delineado” mas sim um “controle
estrito e pragmático dos fatos”.8 Isto seria particularmente verdadeiro
com relação à educação para nativos. Surya Ningrat dá como exemplo a
situação das escolas nativas ditas de “primeira classe”, que em seguida
passaram a ser denominadas pelo governo de Hollandsch-Inlandsche
scholen ou escolas “nativo-holandesas”. No início, essas escolas não
tinham aulas de neerlandês, só em línguas nativas. Finalmente, introduziu-
se o neerlandês, mas só nos últimos anos, e com um único professor
neerlandês para cada escola, o que se mostrou ser, com o tempo, inadequado.
Em seguida, decidiu-se devotar mais horas de aula ao neerlandês
até que, por fim, o governo decidiu que se deveria também ensinar o
7 Raden Mas Suardhy Surya Ningrat (também conhecido como Soewardi Soeryaningrat), “Welke
plaats behooren bij het onderwijs in te nemen eendsdeels de inheemsche talen, ook het Chineesch
en Arabisch, anderdeels het Nederlandsch?”, in Prae-adviezen van het Eerste Koloniaal
Onderwijscongres, (Haia, Korthuis, 1916), pp. 33-72.
8 Surya Ningrat, “Welke plaats”, pp. 34-35.
idioma nos primeiros anos de ensino. E tudo isso, Surya Ningrat enfatiza,
em apenas poucos anos (a partir de 1910). Não existe, segundo ele, nenhum
plano ou projeto escolar de longo prazo, e seu próprio parecer
pretende ser uma resposta parcial a essa lacuna, no que diz respeito à
língua de instrução nas escolas.
O ponto de partida de Surya Ningrat é o pressuposto de que o ensino
na Índia deve ser baseado num “fundamento índico”, isto é, que as
escolas índicas devem preparar os alunos para a sociedade índica, e não
para a sociedade neerlandesa metropolitana. Segundo ele, a criança aprende
matérias mais adequadas à escola nos Países Baixos do que na Índia
Neerlandesa, e que “conceitos holandeses” são ensinados com muita dificuldade,
ou mesmo em vão aos alunos. Como conseqüência, perde-se muito
tempo precioso com informações inúteis, enquanto a criança não aprende
nada a respeito da própria Índia. Naturalmente, admite Surya Ningrat, as
crianças neerlandesas que moram na Índia têm direito a uma educação
holandesa. Isto, no entanto, coloca o espinhoso problema de como unificar
o ensino como um todo, isto é, de como estabelecer um vínculo entre as
escolas para nativos e as escolas européias. A escola designada para isso é
a chamada escola Mulo, uma escola primária avançada, lembrando o antigo
ginásio brasileiro. O problema é que muitos europeus na colônia temem
que a presença de crianças nativas nessa escola, com insuficiente
conhecimento do neerlandês, baixaria o nível geral de educação também
para as crianças européias. Surya Ningrat acha que a solução aqui é melhorar
a qualidade, geralmente baixa, do ensino do neerlandês nas escolas
“nativo-holandesas” em lugar de criar, como queriam alguns, um ginásio
Mulo especial só para crianças nativas, o que, segundo ele, só adiaria
ainda mais o momento em que a Índia teria um ensino unificado para
todos. Nota também que a existência de tipos de escolas primárias separadas
para europeus, nativos e chineses custa muito caro ao governo colonial.
Assim, tanto os interesses dos europeus como os interesses nativos têm
que ser levados em consideração.9
9 Idem, pp. 36-37. As escolas elementares que davam acesso ao ensino ginasial e secundário estavam
divididas em escolas “nativo-holandesas” (Hollands-Inlandsche scholen), escolas primárias européias
(Europeesche Lagere Scholen) e escolas “sino-holandesas” (Hollandsch-Chineesche
scholen). Só nas duas últimas é que o ensino se dava efetivamente em neerlandês, única língua de
instrução dessas escolas. Além destas, existiam escolas nativas sem acesso à educação ginasial
Embora Surya Ningrat note que o próprio governo colonial seja
de opinião de que a unificação do ensino para todos os grupos “raciais”
(landaarden) é desejável, e que isto tenha que se basear na educação
adquirida em um dos três tipos de escolas primárias existentes na colônia,
observa que, ao contrário do que acredita o governo, a questão idiomática
é absolutamente central nessa unificação do ensino. Da solução
dessa questão dependeria literalmente a própria questão da unificação
do ensino na colônia. A “indianização” (verindisching), isto é, o processo
de tornar o ensino mais adequado à realidade índica, depende da questão
lingüística: “No que diz respeito agora à indianização, esta será dominada
principalmente pela luta lingüística (taalstrijd) que será travada
na Índia. A nacionalização (nationaliseeren) da escola consiste em nada
mais que a introdução desta ou daquela língua veicular, de modo que o
ensino não tenha o caráter de uma instituição estranha ao país.”10
Esta citação é muito importante porque, aqui, Surya Ningrat deixa
bastante claro que seu programa não é o do governo colonial, nem se
confunde com o do Ministério de Colônias em Haia. “Indianização”,
para ele, não é meramente reformar o ensino para que este se adeqüe
melhor às necessidades práticas da sociedade colonial (objetivo do governo),
em lugar de espelhar na colônia um modelo metropolitano.
“Indianização” é idêntica a “nacionalização”, e a nação a que Surya
Ningrat se refere claramente não são os Países Baixos, mas a própria
Índia, significativamente, sempre sem o adjetivo qualificativo ou forma
hifenizada, simplesmente como Indië, em lugar de Nederlandsch-Indië
ou Índia Neerlandesa, forma metropolitana e européia colonial. A “luta
lingüística” é elemento essencial aqui: decidir qual será a língua veicular
ou de ensino nas escolas do arquipélago é encontrar a solução não meramente
de um problema de didática ou organização e reforma do ensino
colonial, mas a própria chave da unidade nacional. Existe um país ou
terra (land) – a Índia – que possui um sistema de ensino que tem que ser
e secundária (chamadas “escolas nativas de segunda classe” e “escolas de aldeia” ou desascholen,
estas últimas na área rural). Existiram também algumas pouquíssimas escolas “árabe-holandesas”
na colônia. Naturalmente, Surya Ningrat descreve aqui o sistema de ensino governamental. Existiam
também muitas escolas particulares, tanto européias como chinesas e nativas, especialmente a
partir de 1920.
10 Surya Ningrat, “Welke plaats”, p. 38.
unificado para todos os seus habitantes, e que não pode possuir um caráter
estranho ao país. O pragmatismo administrativo e caráter expediente
das medidas educacionais, assim como as divisões instauradas pelo
colonialismo entre habitantes classificados juridicamente como “europeus”,
“nativos” ou “chineses” (orientais estrangeiros), têm que ser superadas
através de um ensino nacional unificado. E essa unificação do
ensino tem que ser baseada na escolha adequada de um idioma veicular
(voertaal).
Surya Ningrat prossegue: “Já temos agora o início de um duelo
entre o neerlandês e as línguas nativas, e logo surgirá acima de tudo, sem
dúvida, uma contenda entre as próprias línguas nativas. A história ensina
que uma luta assim pode ser tenaz, e não raramente é a razão de um
desperdício de forças e da divisão do povo em diferentes grupos. Seu
resultado não pode ser outro que minar o vigor nacional”.11
Surya Ningrat acredita que, para o bem da nação, essa luta tem
que ser evitada:
Num país como a Insulíndia, onde a heterogeneidade é proverbial,
será necessário trazer a unidade, ainda mais que em outros
lugares, e, caso isto se mostre impossível, esforçar-se na medida
do possível para obter essa unidade. Isto porque a população
é heterogênea em seus usos e costumes, heterogênea na sua língua,
em suas opiniões e outras instituições sociais. Não há unidade
de religião, na justiça dispensada pelo governo e em outros
regulamentos oficiais. Contudo, no momento, essa heterogeneidade
não é tanta que torne impossível tornar a massa mais
homogênea.12
Assim, tornar a “massa” mais homogênea é fundamental para
Surya Ningrat. Seu projeto e ambição aqui estão bastante claros: face à
imensa – e, poderíamos aventar, do ponto de vista de um construtor de
nação, quase assustadora – heterogeneidade da Insulíndia – onde virtualmente
nada, nem religião, nem língua, nem costumes, nem a lei, une
todos os habitantes – é necessário esforçar-se por criar alguma unida-
11 Idem, p. 38.
12 Idem, p. 38.
de.13 O projeto de Surya Ningrat é assim nada menos que pensar a nação
face à extrema heterogeneidade de condições do arquipélago. Ele argumenta
que o próprio governo colonial já havia tomado medidas no sentido de desenvolver
um “sentimento de unidade” (saamhorigheidsgevoel) entre os diversos
grupos da população ao declarar, em 1913, que o nativo e o europeu
deveriam ser tratados pelos funcionários coloniais em pé de igualdade. Para
Surya Ningrat, o “dualismo”, ou a divisão entre “europeus” e “nativos”,
prevalecente na sociedade colonial deveria ser suprimido não só no campo
judiciário, mas também no do ensino. Neste último campo, é importante
que o nativo tenha acesso a todos os níveis de ensino, de modo a
poder ter os instrumentos necessários para ser igual aos europeus.
Na preparação desse ensino unificado para todos os grupos coloniais,
é essencial lutar por uma unidade lingüística, como melhor instrumento
também para despertar o sentimento de unidade na população.
Aqui, a unidade do ensino – importante para a unidade nacional – está
vinculada à unidade de língua. Contudo, Surya Ningrat mostra ser excelente
conhecedor da realidade local. Em lugar de fazer um apelo nacionalista
ideológico em prol de uma língua nacional única, admite que num
período “de transição”, como aquele então vivido pelo país, não se pode
procurar uma língua comum a todos que vá substituir e eliminar como
desnecessárias as outras línguas. Só a história poderá determinar, enfatiza,
se no futuro as diferentes línguas conseguirão manter-se ou perecerão. A
necessidade premente era apenas de encontrar a língua que fosse mais
adequada para ser usada entre os diferentes grupos da Índia: “Essa língua
será aprendida na escola ao lado da língua materna; ela será necessária
para a preparação da fusão, que será ainda mais intensa no futuro,
de todo o ensino no estado índico em formação.”14
13 A heterogeneidade legal aqui se refere aos diferentes regulamentos e tribunais que regiam a vida
dos diferentes grupos etno-jurídicos da colônia. A isto há que acrescentar que a administração
colonial era muito heterogênea também no que dizia respeito ao controle – direto ou indireto – das
diversas regiões do arquipélago. Algumas regiões – como as chamadas Vorstenlanden ou principados
de Java central – gozavam de um mínimo de autonomia, que era impensável em regiões sob
controle colonial direto, embora essa diferença diminuísse ao aproximar-se o fim da era colonial.
14 O neerlandês desta passagem é de difícil tradução: “Die taal leere men in de scholen naast de
eigen taal; dit is dan nog noodig ter voorbereiding van de in de toekomst nog intensiever gaande
samensmelting van het geheele onderwijs in den wordenden Indischen staat”. Surya Ningrat,
“Welke plaats”, pp. 39-40.
Nessa passagem, língua de ensino, educação e o estado-nação em
formação são todos mencionados juntos. Não seria exagero dizer que
Surya Ningrat acredita que sem língua veicular não é possível construir
o estado-nação. A relação entre esses dois é assim direta. Não é de surpreender
que o resto do parecer seja, em grande medida, dedicado exatamente
à discussão detalhada dos problemas, méritos e deméritos relacionados
aos principais idiomas usados no arquipélago. Surya Ningrat quer
dar conta de toda a problemática lingüística, para assim fundamentar
melhor sua própria escolha.
Essa escolha recai sobre a língua malaia. Segundo ele, essa língua
apresenta várias vantagens fundamentais. Em primeiro lugar, desde tempos
pré-coloniais, é língua franca no arquipélago, não só entre europeu e
indígena, mas também entre os diversos grupos nativos que, de outro
modo, não conseguiriam se entender entre si. Todo europeu a entende,
mesmo que a fale mal. Embora nas escolas européias seja inevitável a
manutenção do neerlandês como língua principal, também nessas escolas
seria desejável que o ensino formal do malaio fosse introduzido, já
que seus alunos vão atuar futuramente no contexto colonial, onde essa
língua é vital. Além do mais, o malaio é uma língua facílima de aprender.
Não se deve esquecer também que o malaio é extremamente
fácil em sua constituição. Ao contrário do javanês que só parece
ser acessível a alguns estrangeiros, aprende-se o malaio facilmente.
Prova disto é que o malaio, ainda que não seja falado
com pureza, é bem compreendido em virtualmente todas as regiões
da Índia. Por isso, o malaio é uma língua que se ajusta
facilmente a novas idéias e condições, e que conhece – talvez
devido à sua concisão e brevidade – inúmeras expressões vivas,
fortes e picantes, além de possuir riqueza de vocabulário.15
Seguem-se vários parágrafos de loas à língua malaia. Em seguida,
Surya Ningrat aborda aquela que é sua língua materna, isto é, o
javanês, língua aparentada ao malaio, mas muito diferente desta, a ponto
de serem mutuamente ininteligíveis. A importância do javanês está ligada
primordialmente a dois fatos: em primeiro lugar, o imenso peso
15 Surya Ningrat, “Welke plaats”, pp. 40-41.
demográfico dos javaneses no arquipélago – em torno de metade da população
total no período colonial tardio, e pouco menos que isso no período
pós-colonial. Em segundo lugar, a enorme importância histórica dos estados
javaneses através dos séculos, e da cultura promovida pelas cortes
javanesas, por exemplo, no campo da literatura, no qual o javanês possui
credenciais muito mais antigas e amplas que o malaio. Em muitos
sentidos, o javanês é a mais prestigiosa língua indígena do arquipélago.
É uma língua que pode sem dúvida ser equiparada às línguas européias
de então e do passado, já que representa uma civilização antiga e rica.
Contudo, o javanês é também uma língua que é difícil de ser aprendida
pelos habitantes não-javaneses do arquipélago. Embora tanto o javanês
com o europeu ou, ainda, o árabe e o chinês, o madurês e o sundanês, etc
consigam aprender brincando o malaio (spelenderwijs de Maleische taal
te leeren), o mesmo não se dá com a língua javanesa. Mesmo para aqueles
de origem javanesa se trata de uma língua difícil de falar bem, nem os
sábios, diz Surya Ningrat, o conseguem.
Aqueles raros falantes não-javaneses do javanês são pessoas que
passaram muito tempo em Java central – historicamente o centro da cultura
de corte javanesa. O problema é que o idioma possui dois tipos de
linguagem dentro dele, que são quase como duas línguas diferentes: um
“alto” e um “baixo” javanês. Cada conceito pode ser representado por
duas ou mais palavras diferentes que não são exatamente sinônimas,
mas palavras que se usam em contextos sociais diferentes e – o que é
pior –, que são etimologicamente distintas também, o que impede seu
reconhecimento fácil. Seu uso está ligado ao status do falante e do
interlocutor, isto é, sua posição relativa na hierarquia social local. Um
conhecimento profundo dos usos e costumes javaneses é necessário assim
para o uso adequado do idioma. Para piorar, o javanês possui uma
escrita própria, vagamente derivada do sânscrito, e que é muito difícil
para os estrangeiros aprenderem (o malaio escrevia-se tradicionalmente
em escrita árabe, mas no século XX quase somente em escrita latina).
Surya Ningrat conclui que seu próprio idioma materno deve assim ser
desconsiderado como língua de instrução geral de todo o povo índico. O
javanês, apesar de seu prestígio que se manterá ainda por séculos, jamais
se tornará a língua franca do arquipélago. A língua vai, contudo,
sobreviver devido à sua importância histórica e cultural. Além do mais,
o malaio é uma língua mais democrática que o javanês, a ponto de que
muitos funcionários coloniais javaneses preferem falá-la à sua própria
língua materna, o que evita assim o problema perene de reconhecer adequadamente
a hierarquia do interlocutor através da escolha léxica do
falante. Além do mais, na própria imprensa o malaio desempenha um
papel mais importante que o javanês, e até jornais javaneses produzidos
em Java central possuem textos em malaio. Também em reuniões – mesmo
entre javaneses – usa-se com freqüência o malaio em lugar do javanês.
Assim, o malaio deve ser a língua comum dos habitantes índico-orientais
(Oost-Indiërs), e não o javanês.16
Tendo discutido o malaio e o javanês, as duas mais importantes e
difundidas línguas nativas do país, Surya Ningrat passa então a debater
o papel do neerlandês no arquipélago. Pergunta-se se, apesar de o neerlandês
ser amplamente usado nas escolas para europeus e também em
outras escolas, a língua é realmente adequada para ser língua de conversação
da população índica (Indische bevolking). Nota que, apesar de
muitas línguas serem faladas no país, o neerlandês é, com poucas exceções,
a que é menos falada dentre elas. É surpreendente, diz, que após
três séculos de presença neerlandesa apenas um pequeno grupo nos mais
altos estratos da população entenda o neerlandês. Surya Ningrat prevê
também que sequer no futuro o neerlandês poderá se difundir mais do
que na época. O neerlandês é certamente o instrumento essencial para os
intelectuais da sociedade índica (Indische samenleving) terem acesso
aos “tesouros da civilização ocidental”, nas palavras de R. Kartini, uma
aristocrata javanesa escrevendo no início do século. Contudo, os próprios
neerlandeses não gostam de ser abordados por nativos em neerlandês,
o que consideram como um desrespeito e atrevimento. Esse fenômeno
estranho, mas comum, somado ao fato de que os próprios indo-europeus
(mestiços) que falam neerlandês estão usando cada vez mais o malaio,
fará com que o emprego do neerlandês não se difunda no arquipélago.
Acrescente-se também que o neerlandês é, como o javanês, um idioma
16 Idem, pp. 45-46. Oost-Indiër é aqui o gentílico de Oost-Indië ou “Índia Oriental”, outro nome
usado para o arquipélago (em português, em mapas produzidos antes de 1950, a colônia é denominada
de “Índias Orientais Holandesas”).
muito difícil, e muito diferente e distante das línguas faladas no arquipélago.
“O neerlandês é estranho a nós devido à sua particularidade lingüística
(taal-eigen) estranha, sua sintaxe estranha, suas expressões,
locuções, provérbios caracteristicamente não-índicos, quase todos eles
emprestados aos usos e costumes holandeses, que não conhecemos.”17
Essa afirmação é quase surpreendente, vinda de um pedagogo que
domina perfeitamente o neerlandês, e está escrevendo nesse idioma. Contudo,
para Surya Ningrat, assim como sua própria língua materna não é
adequada para ser língua comum da sociedade índica, o neerlandês
tampouco o é, a não ser como língua a ser ensinada aos estratos mais
altos da sociedade índica, isto é, à elite do país. Aqui, interessantemente,
a política educacional colonial – se é que se pode dizer que houve uma –
se coaduna com as opiniões de Surya Ningrat, já que o estado colonial
praticamente jamais difundiu o idioma muito além da elite dos diversos
grupos coloniais. Ele acredita que o principal uso do idioma é como
instrumento para ter acesso às “ciências ocidentais” em benefício da pátria
(vaderland). Os intelectuais em particular devem tomar cuidado para
não conversar entre si em neerlandês e assim alienar-se (zich vervreemden)
de seus concidadãos muito mais numerosos que, contudo, também têm
direito a participar na prosperidade geral do país, mesmo sem conhecerem
a língua neerlandesa. Cita as palavras da famosa aristocrata javanesa
Kartini, escrevendo no início do século:
Que a língua neerlandesa seja o meio de instrução!
Somente o conhecimento de uma língua européia, em primeiro
lugar naturalmente o neerlandês, pode levar, no momento, os
estratos mais altos da sociedade nativa ao desenvolvimento e à
liberdade espiritual.
O melhor meio de aprender esse idioma é pensar e falar tanto
quanto possível no idioma. Mas assim não se descuidar da própria
língua materna, a que se deve dar a maior atenção ao lado
do holandês...18
17 Surya Ningrat, “Welke plaats”, p. 48.
18 Idem, p. 49. Sobre Kartini, ver também Groeneboer, Weg tot het Westen, passim.
Assim como Kartini, famosa educadora do começo do século e a
primeira mulher javanesa a promover a educação feminina, Surya Ningrat
também vê o neerlandês apenas como meio de adquirir conhecimentos,
não como veículo de cultura em si. A assimilação a uma cultura neerlandesa
através do idioma neerlandês não é o objetivo desejado, mas sim a
construção ou manutenção de uma identidade própria, mas “desenvolvida”
através da aquisição de conhecimentos ocidentais. Como o país era
uma colônia neerlandesa, o neerlandês era naturalmente a língua óbvia a
ser aprendida. Não há aqui a menor mostra de afinidade ou simpatia à
cultura e língua neerlandesas em si. Pelo contrário, o escritor exímio de
neerlandês que é Surya Ningrat nos assegura que as expressões, locuções,
etc do neerlandês são emprestadas a usos e costumes holandeses
que “não conhecemos”, e – quase podemos escutar nas entrelinhas –
tampouco nos interessam. Ao lado da língua neerlandesa, tanto Kartini
como Surya Ningrat enfatizam que é necessário manter o próprio idioma
materno e mesmo cultivá-lo: a assimilação a outra língua ou cultura não
é em absoluto desejável. Podemos assim dizer que o uso da língua neerlandesa
é aqui estritamente pragmático: no caso de Surya Ningrat, seu
uso recai em benefício da pátria índica (Kartini, escrevendo ainda na
virada do século, portanto pouco antes do surgimento do nacionalismo
que viria logo depois, fala em “sociedade nativa” (Inlandsche
maatschappij), com isso querendo indicar talvez principalmente a sociedade
javanesa à qual pertencia).
Quanto às demais línguas autóctones do arquipélago – como o
sundanês, falado por uma substancial minoria em Java, o madurês, falado
na vizinha ilha de Madura, a língua minangkabau, falada em Sumatra,
o batak, também falado em Sumatra, e outras –, devido ao âmbito restrito
de seu uso, não são adequadas, de acordo com Surya Ningrat, para ser
empregadas em outras regiões da Índia, a não ser aquelas em que são
línguas nativas. São, portanto, de importância e âmbito estritamente regionais.
Quanto ao chinês e ao árabe, línguas de duas importantes minorias
comerciais no arquipélago que datam do período pré-colonial, são
línguas desconhecidas da esmagadora maioria da população. Somente
membros da minoria chinesa empregam o chinês, por exemplo, que não
é falado por nenhum habitante nativo propriamente dito. Para piorar, os
próprios chineses freqüentemente empregam o malaio em lugar de usar o
chinês, e a imprensa chinesa do arquipélago é em geral de língua malaia
mais do que chinesa. Com relação ao árabe, contudo, apesar de só ser
falado pela pequena minoria árabe, ele possui uma função importante
como língua religiosa. As crianças muçulmanas em Java aprendem o
árabe através de recitações repetidas de passagens do Corão, mas esse
conhecimento é em geral só passivo e se limita à leitura e compreensão
de textos recitados. Assim, embora tanto o chinês quanto o árabe tenham
um lugar na sociedade colonial, nem um nem outro poderão servir de
língua de uso prático no arquipélago.19
O cerne da questão lingüística, portanto, está no uso adequado do
malaio, do neerlandês e das línguas maternas no ensino. Surya Ningrat
diz que no futuro talvez seja possível falar do malaio como língua oficial
única do arquipélago; no momento, contudo, só se pode falar de uma
língua que permita a compreensão mútua entre os diferentes povos das
ilhas. Finalmente, o uso do malaio não elimina, por razões práticas, a
importância do neerlandês no ensino. Antes que se consolide uma língua
que seja tanto uma língua oficial como uma língua comum no arquipélago,
haverá um período de transição, já iniciado, no qual a Índia terá
necessidade do Ocidente para o seu desenvolvimento.
Todos os materiais necessários para um Estado em formação,
teremos de trazer principalmente da Europa; porque, sem sermos
cegos com relação aos aspectos sombrios da civilização moderna
e sem negarmos o muito que há de bom em nossa própria
cultura, devemos contudo reconhecer que a Índia tem de aprender
da Europa no que diz respeito à sua civilização técnica. Veja
como o Japão envia seus filhos ao Ocidente, que ao retornarem à
Pátria fortalecem o vigor nacional. O mesmo acontecerá com a
Índia, e por isso é preciso que conheçamos uma das línguas européias.
Que o neerlandês seja a língua que mais se leve em consideração,
nesse sentido, não necessita maior explicação.20
Surya Ningrat enfatiza que não é falta de nacionalismo sustentar
essa opinião, pelo contrário, a intenção é exatamente aprender o neerlan-
19 Surya Ningrat, “Welke plaats”, pp. 50-52.
20 Idem, p. 53.
dês, e outras línguas européias que possam ser úteis, para o bem da
“evolução nacional” (nationale evolutie).21 Quando o conhecimento necessário
tiver sido adquirido, vem o segundo período postulado por Surya
Ningrat, o de difusão em círculos mais vastos do conhecimento científico
adquirido por uns poucos. Isto só poderá acontecer através das línguas
nativas, e talvez o javanês seja, para propósitos científicos, mais
adequado que o malaio, que permaneceria, contudo, como língua de conversação
e do comércio. O modelo aqui é o europeu: assim como no
continente europeu existem vários idiomas – o francês para a diplomacia,
o alemão para a ciência, o inglês para o comércio –, na Índia - país
vasto como a Europa – também mais de uma língua poderá ser usada.
Esse projeto de construção da nação índica necessita, contudo, de uma
introdução maior do neerlandês no ensino para nativos. Como veremos
abaixo, o argumento de Surya Ningrat nesse sentido é mais uma vez
perfeitamente congruente com seu projeto nacional, e não tem a ver –
pelo menos dentro da lógica de sua própria visão – com assimilação à
cultura da metrópole per se.
Surya Ningrat menciona a polêmica no periódico De Indische Gids,
iniciada em 1915, entre D.J.A. Westerveld, um professor neerlandês de
escola secundária em Semarang, e o nacionalista de origem javanesa
Tjipto Mangoenkoesoemo. Não cabe relatar essa polêmica aqui.22 Basta
saber que a posição de Westerveld era contra a “neerlandização”
(vernederlandsching), isto é, o emprego do neerlandês como língua de
instrução única das escolas índicas, colocando o acento na importância
das próprias línguas nativas; já Mangoenkoesoemo defendia a posição
contrária, de que a introdução e mesmo difusão exclusiva do neerlandês
no ensino eram vitais a ponto de fazer um apelo no sentido de substituir
o javanês pelo neerlandês. Também em Mangoenkoesoemo – importante
voz nacionalista da época – vemos a preocupação com a construção da
nação tendo como motor a política lingüística, a “unificação das diferentes
tribos do povo”.23 A diferença de opinião entre Surya Ningrat e esses
21 Idem, p. 53.
22 Idem, pp. 54 e ss.
23 Isto é, “de éénwording van de verschillende volksstammen” – citado em Surya Ningrat, “Welke
plaats”, p. 56. A idéia aqui parece ser de que existe um único povo dividido, contudo, em diferentes
“tribos”.
dois autores é importante: Surya Ningrat é de opinião que o neerlandês é
muito importante, naquele momento histórico, para a educação nativa,
mas discorda de Mangoenkoesoemo em sua condenação das línguas nativas,
porque então, ao chegar o período de difusão do conhecimento
adquirido através do neerlandês, não haveria como transmiti-lo à nação
como um todo, porque as línguas autóctones teriam sido expulsas do
sistema escolar. As línguas autóctones têm que estar prontas para serem
os (futuros) veículos de transmissão do conhecimento científico ocidental
para a massa da população, e isto só poderá se dar se as escolas
nativas não forem totalmente “neerlandesadas”.
Surya Ningrat tampouco está de acordo com o ponto de vista de
Westerveld. Concorda com ele no sentido de que os habitantes índicos
“desenvolvidos” (ontwikkelde Oost-Indiërs) pouco conheçam seus próprios
idiomas e não falem entre si nem o javanês nem o malaio. Em
especial, é de lamentar muito que os médicos nativos – formados na
escola colonial de medicina para nativos, que usa o neerlandês como
língua de ensino – não consigam falar sem dificuldade sua própria língua
materna, já que todo dia têm que lidar com pacientes que só falam
essa língua. Muitos javaneses não sabem escrever uma carta em javanês
ou, pior ainda, sequer conhecem o alfabeto javanês. Essa situação de
verdadeira “decadência nacional” (nationale decadentie) está intimamente
ligada ao fato de que apenas aqueles pouquíssimos nativos que
conseguem entrar para uma das escolas primárias para europeus podem
chegar a fazer um dia um curso superior. Nessas escolas, o ensino é
exclusivamente em neerlandês, e as línguas nativas não existem nem
como matérias optativas. Contudo, os egressos das escolas para nativos
não têm muita chance de conseguir chegar aos escalões mais altos do
sistema educacional, já que o ensino de neerlandês nessas escolas é ruim
ou mesmo inexistente. Mesmo os alunos das “escolas nativas de primeira
classe”, onde existe o ensino mais intensivo do neerlandês, não conseguem
continuar seus estudos. E até mesmo a transformação (então recente)
dessas escolas em “escolas nativo-holandesas”, com ensino totalmente
em neerlandês, não ajudou.
Surya Ningrat considera que o projeto de Westerveld – de ginásios
(MULO) ou escolas secundárias (HBS) em língua javanesa ou malaia –
não passa de “castelos nas nuvens”, dadas as condições da sociedade
índica da época.24 Surya Ningrat menciona, por exemplo, que não há
mais que trinta habitantes do arquipélago (nativos) estudando nos Países
Baixos naquele momento, o que torna a idéia de um sistema escolar totalmente
“nativo” uma mera “utopia”, já que não haveria professores
suficientes. As recomendações que ele propõe são no sentido de melhorar
o ensino do neerlandês, em primeiro lugar nas próprias escolas nativas
de primeira classe. Ao contrário de ensinar apenas na língua local
(landstaal) nos três primeiros anos, como acontecia então, o neerlandês
deveria ser introduzido, como matéria, já no primeiro ano. Contudo, o
professor de neerlandês deveria ser um professor nativo com qualificações
para tanto, já que um professor dos Países Baixos não conseguiria
nem entender as dificuldades dos alunos, nem se comunicar com eles em
seu próprio idioma. Pouco a pouco, a cada ano, se aumentaria o número
de horas-aula de neerlandês, até que, a partir do quarto ano de ensino, se
ensinaria exclusivamente nesse idioma. Haveria aqui um professor neerlandês
que, contudo, estaria encarregado apenas da matéria “neerlandês”
propriamente dita, e não do ensino de todas as matérias. Nesse estágio, é
melhor que as crianças aprendam o idioma de um neerlandês nativo mesmo,
de modo a terem um falante nativo como modelo. Contudo, o ensino
de idiomas locais continuaria mesmo nas classes mais avançadas. Nos
últimos dois anos seria incluído também o malaio como disciplina obrigatória.
Assim, a escola primária se tornaria desse modo trilíngüe, com os
alunos estudando sua língua materna, o neerlandês e o malaio.
Nas escolas européias, o malaio seria introduzido como disciplina
obrigatória. No primeiro ano do MULO, onde nativos e europeus estudariam
juntos, os alunos de origem nativa receberiam um reforço de
neerlandês, enquanto os europeus um reforço de malaio. Desse modo,
acredita Surya Ningrat, o nível de neerlandês dos alunos nativos e europeus
seria equivalente, e partir daí haveria a unificação do ensino colonial
depois de terminada a escola primária. Até aqui, como nota, sua proposta
não é fundamentalmente diferente da proposta da própria Comissão
de Ensino colonial.25 Contudo, a proposta de Surya Ningrat não pára
24 Surya Ningrat, “Welke plaats”, p. 57.
25 Idem, p. 60.
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aí. Ele acha fundamental estender também o ensino do neerlandês para
as (mais numerosas) “escolas nativas de segunda classe”. Até então,
essas escolas não davam acesso ao ginásio e escola secundária, já que
nelas não se ensinava o neerlandês. É importante que nos últimos três ou
quatro anos dessas escolas também sejam dadas aulas em língua neerlandesa,
já que existem poucas “escolas nativas de primeira classe”, a
maioria dos alunos vindo das escolas de segunda classe. A intenção aqui
é permitir que os alunos dessas escolas, caso tenham necessidade de usar
o neerlandês para continuar estudando, possam fazê-lo. Embora a intenção
do governo colonial, ao criar essas escolas de segunda classe, fosse
apenas criar eventualmente estudantes para os cursos de ofícios e profissões
de pouca qualificação (lavoura, enfermagem, etc), Surya Ningrat
enfatiza que “deve ser dada a todos a oportunidade de eventualmente se
qualificarem mais”.26 A lógica que rege o pensamento de Surya Ningrat
não é aqui mais a lógica colonial – formar profissionais nativos para o
“baixo-escalão” da economia colonial – mas a lógica do estado-nação:
todo cidadão índico tem que ter a oportunidade de continuar seus estudos,
o que, no sistema então vigente, era virtualmente impossível para os
egressos das escolas de segunda classe, pela sua pouca ou nenhuma familiaridade
com o neerlandês.
Surya Ningrat tem assim dois objetivos principais: o “povo índico”
(het Indische volk) – que poderíamos denominar de (proto-) povo do futuro
estado-nação índico – tem que ter a oportunidade de continuar seus
estudos, o que significa, nas circunstâncias da época – e Surya Ningrat
enfatiza, ad nauseam, a importância circunstancial da língua –, o aprendizado
do neerlandês. O segundo objetivo é não discriminar as línguas nativas
no ensino, nem negligenciá-las no currículo, já que será somente por
meio delas que os conhecimentos adquiridos por aqueles que continuaram
estudando poderiam ser eventualmente difundidos entre a população em
geral. Essa leitura das “condições índicas” (Indische toestanden) é muito
pragmática tendo em vista não as necessidades do colonialismo – formar
diferentes grupos com qualificações diversas para o mercado de
trabalho colonial –, mas a criação de um futuro estado-nação fundado
26 Idem, p. 61.
num povo unificado por um sistema de ensino comum.27 A escola é o
fulcro e o cerne da futura nacionalidade índica. E a batalha pelo idioma
veicular, ou de ensino, é fundamental dentro da escola. Nessa batalha,
uma escolha “utópica” pelo idioma nativo como língua única de ensino é
tão ruim quanto uma preferência unilateral pelo idioma colonial. A situação
índica pede assim uma leitura diferenciada e cuidadosa das condições
da educação, ainda que regida claramente pelo ideal nacional. Assim,
a preferência pelo neerlandês não é unívoca, mas regida por uma
necessidade circunstancial: no futuro, aventa Surya Ningrat, a língua
neerlandesa talvez não seja mais que um mero idioma estrangeiro ensinado
nas escolas, e as línguas nativas serão muito mais importantes.28
É nesse sentido também que Surya Ningrat estende suas recomendações
para aquela que é sem dúvida a maior subdivisão do ensino colonial
em número de escolas e alunos, ao mesmo tempo em que é o tipo de
escola mais humilde: as dorpsscholen ou desa-scholen, isto é, as “escolas
de aldeia” que o governo encorajou a população a criar em toda a
área rural. Essas escolas eram virtualmente as órfãs do sistema escolar
colonial: não só não recebiam qualquer espécie de subsídio do governo
colonial, ao contrário das outras – os aldeões tinham de fundá-las e mantêlas
com seus próprios recursos, ainda que sob supervisão do governo –,
como a qualidade do ensino nelas era freqüentemente baixíssima. Desnecessário
dizer que essas escolas eram um verdadeiro beco sem saída do
ponto de vista educacional, não davam acesso a nenhum patamar superior
do sistema educacional, nem mesmo às escolas de ofícios e artes para
nativos. Eram virtualmente escolas planejadas pelo governo colonial para
formar camponeses ou trabalhadores braçais (o governo obrigara as diversas
administrações regionais e distritais da colônia a forçar as comunidades
camponesas a instalarem – e financiarem com recursos próprios
– essas escolas em toda parte).
Surya Ningrat vê essas escolas quase como um mal necessário, e
de caráter absolutamente temporário, já que não são verdadeiras
volkscholen (escolas do povo).29 Num futuro não muito distante elas
27 A expressão “condições índicas” encontra-se em Surya Ningrat, “Welke plaats”, p. 57.
28 Surya Ningrat, “Welke plaats”, p. 61.
29 Idem, pp. 66 e ss.
seriam, esperava, transformadas em escolas para nativos no modelo proposto
acima. Era impossível, segundo ele, utilizar nelas qualquer outro
idioma veicular que não fosse o idioma local ou regional. Contudo, era
necessário incluir no seu currículo também o malaio – ensinado em
caracteres latinos, considerados mais fáceis do que a escrita árabe usada
tradicionalmente –, já que o camponês (desaman) teria que eventualmente
entrar em contato com pessoas de fora da comunidade – chineses,
europeus, etc –, e talvez até prestar serviços a essas pessoas. Surya Ningrat
acrescenta que o “habitante índico não vive mais em seu próprio mundinho
fechado, e o camponês tampouco”.30
Diz isso com relação à necessidade de usar caracteres latinos, em
lugar da escrita tradicional javanesa ou árabe, por razões práticas, na
alfabetização dos camponeses. Contudo, essa frase também ilustra bem
a ênfase de Surya Ningrat numa educação nacional: o que poderíamos
chamar de diversos regionalismos têm que ser superados, inclusive o
particularismo da vida camponesa. Não é possível desejar que a escola
camponesa introduza o ensino do neerlandês; contudo, pelo menos o ensino
do malaio teria que ser introduzido para que o camponês tenha acesso
a um mundo maior que o de sua cultura e idioma de origem: o mundo
índico, pelo menos, eminentemente acessível através do malaio. Assim
como os intelectuais e os médicos têm que ser capazes de se comunicar
fluentemente com seus compatriotas (landgenooten) índicos, também o
camponês tem que poder falar com seus compatriotas. A comunicação
fluente entre mundos em princípio distantes um do outro ou fechados em
si próprios é o objetivo básico de Surya Ningrat. Nem o intelectual
“neerlandesado” das cidades, nem o camponês javanês podem mais viver
em seus próprios “mundinhos” fechados. A nação índica em formação
exige que seus diversos segmentos – suas diversas “tribos” – se
comuniquem entre si e se “unifiquem” em alguma medida. As divisões
instituídas pelo colonialismo – ou às quais o colonialismo é indiferente –
não podem continuar. É nesse sentido que Surya Ningrat termina seu
parecer com a afirmação de que o malaio deverá tornar-se eventualmente
a língua de todo o “povo índico”, embora sem exclusão do javanês e
30 Idem, p. 66.
das outras línguas, incluindo aí o neerlandês.31 Isto é assim porque, como
ele declara em outro lugar, “língua e povo são uma unidade” (taal en
volk zijn één). Sem língua, não há povo, e tampouco nação.32
O parecer de 1916 de Surya Ningrat tem um caráter quase visionário.
Em textos posteriores – da década de 1930, início da década de
1940 e início da década de 1950 – Surya Ningrat não modificou substancialmente
sua posição. As duas primeiras mudanças que podemos
observar são, em primeiro lugar, uma mudança de nome – Surya Ningrat
passa a se chamar Ki Hadjar Dewantara – “Ki” é um título javanês
usado para antigos mestres, equivalente a “doutor” ou “professor”.33 É
também o nome sob o qual ficou conhecido no período pós-colonial.
Além dessa mudança de nome, existe uma mudança de idioma, as publicações
agora se fazem, pelo que pude averiguar, em língua malaia. Após
1928 estabelece-se um nacionalismo que se denomina de “indonésio”: o
estado-nação almejado passa a chamar-se Indonesia, ou bangsa Indonesia
(povo indonésio) e a língua Bahasa Indonesia ou “língua indonésia”.
Esta última, naturalmente, nada mais é que o malaio, agora eleito oficialmente
pelos nacionalistas como língua nacional, status que seria confirmado
tanto no período da ocupação japonesa de 1942 a 1945, quanto no
período pós-colonial posterior. Embora os neerlandeses não hajam reconhecido
oficialmente o nome “Indonésia” durante o período colonial, a
partir de 1942, com a ocupação japonesa, o nome torna-se também cada
vez mais o nome do país em neerlandês – Indonesië (seus habitantes,
Indonesiërs, e sua língua o Indonesisch). O nome Indië (em malaio,
Hindia) usado pelos nacionalistas na década de 1910 é abandonado. O
nacionalismo é então um fenômeno amadurecido e reconhecido da sociedade
colonial, embora, na década de 1930, o governo neerlandês não
tivesse nenhuma intenção de dar a independência e nem sequer autonomia
ao país num futuro previsível, e reprimisse duramente qualquer
31 Idem, p. 70. Para o neerlandês, contudo, Surya Ningrat propõe que seja exigido apenas que a
população possa ler e entender o idioma, e não falá-lo (Surya Ningrat, “Welke plaats”, p. 72).
Mais uma vez, é uma proposta pragmática.
32 Surya Ningrat, “Taal en volk”, Hindia Poetra, 1 (1916), pp. 74-76.
33 “Hadjar” pode ser a pedra sagrada que se encontra na Casbá em Meca, ou então significar o
verbo “ensinar”; “dewa” é “deus” ou “divino” ou, ainda, “conselho” (no sentido de assembléia).
“Dewantara” também pode significar “entre ou em meio aos deuses”.
manifestação considerada mais perigosa do nacionalismo nativo. As tensões
da sociedade colonial estão nesse momento muito mais exacerbadas,
com a política colonial – inaugurada oficialmente com a criação de
um parlamento colonial em 1918, altamente polarizada por partidos étnicos.
Em geral, cada partido étnico não admite membros plenos, isto é -
com direito a voto e a exercer funções – de outro grupo que não o próprio.
A unificação do ensino colonial, assim como a do sistema jurídico,
apesar de mudanças favoráveis ocorridas em geral antes de 1930, encontra-
se longe ainda do estágio de um processo acabado. A era colonial
terminaria, contudo, com a criação da primeira universidade no arquipélago,
seguida quase imediatamente pela ocupação japonesa em 1942.
Em “Pengadjaran bahasa” (O ensino de idiomas), Hadjar
Dewantara expõe seu programa pedagógico.34 Dewantara postula que,
desde os tempos da Companhia das Índias, o ensino de línguas estrangeiras
(bahasa asing) no país tem caráter “materialista” e foi utilizado apenas
como “instrumento de trabalho” (alat perburuhan), isto é, como
algo ligado à área do trabalho colonial e das necessidades de mão-deobra
do estado colonial. O ensino, ou educação propriamente dita, não
era prioridade nesse ensino de idiomas, e não possuía nenhum objetivo
cultural. Aprender um idioma estrangeiro, diz Dewantara, significa ter a
oportunidade de “enriquecer o caráter (budi) da nação (kebangsaan)
com valores internos ou espirituais (nilai kebatinan) de outros povos,
cada um dos quais possui suas próprias riquezas espirituais (benda-djiwa)
especiais. O Senhor (Tuan) deu a cada povo e país acesso diferenciado
ao saber e às ciências. As diferenças entre os povos são assim importantes,
e não se pode desejar separar-se da “sociedade humana mundial”
(masjarakat kemanusiaan sedunia)”. Os livros sagrados, por exemplo –
o Corão, o Torá, os Upanishads –, não são posse de um único povo ou
nação, mas sim de toda a humanidade. Assim, todo saber e ciência que
possam aumentar a riqueza espiritual humana têm que ser aceito, mesmo
que venha de fora de nossa própria nação.35
34 Ki Hadjar Dewantara, “Pengadjaran bahasa”, in Karya Ki Hadjar Dewantara. Bagian pertama:
Pendidikan, (Jogjacarta, Pertjetakan Taman Siswa, 1962), pp. 495-506 (originalmente publicado
em 1933).
35 Idem, p. 495.
A questão central, para Dewantara, é decidir que língua estrangeira
se deve aprender para ter acesso ao saber e ciência vindos de fora.
A resposta depende dos interesses de cada um: para os que se interessam
pelo Islã, por exemplo, o aprendizado do árabe é necessário. Já os que se
interessam pela rica civilização do passado no país têm que aprender o
javanês clássico ou mesmo o sânscrito. Para os que se interessam por
uma ciência moderna, há que aprender a língua estrangeira mais adequada
ao caso, seja o alemão ou o francês. Para aqueles que se interessam
por relações entre os povos do mundo e contato com o exterior, o inglês
é essencial. Para o “nosso povo” (bangsa kita) em geral, em prol do
desenvolvimento espiritual, cultural e social, é importante ter em mente
que, mesmo levando em consideração interesses especiais e diferenciados,
a ligação com o povo europeu (bangsa Eropa) é muito importante
para o desenvolvimento social e técnico. E, nesse sentido, é inevitável
que a língua inglesa tenha uma importância enorme, como principal língua
européia que é. Quanto ao neerlandês, Dewantara avisa:
A posição da língua neerlandesa nesse contexto naturalmente
possui somente um valor incidental ou temporário, ligado a interesses
particulares. Devido a isso, naturalmente, é muito necessário
que aprendamos esse idioma; contudo, seguindo nosso
princípio, ou visto da perspectiva de nossos interesses, a língua
neerlandesa não superará a língua inglesa.
Pode ser que esse nosso princípio não esteja de acordo com o do
próprio povo neerlandês, mas isto é como deve ser [...].
Lembre-se que com a língua neerlandesa apenas se abre o mundo
neerlandês, enquanto que com a língua inglesa abre-se a
porta de todo o mundo.36
No contexto local, é importante lembrar que as línguas faladas no
continente asiático serão necessárias para as “ciências espirituais” (ilmu
kebatinan) como o Islã, o budismo, a filosofia chinesa e indiana, e assim
por diante. Nesse sentido, são particularmente importantes o árabe e o
sânscrito, especialmente também porque o primeiro idioma está bastante
difundido no continente. Junto com o chinês, o árabe também é importante
no estabelecimento de contatos na Ásia.
36 Idem, pp. 496-497.
Na escola primária (Taman-Anak) deve ser utilizada a língua materna
dos alunos, seja qual for, tanto como língua de instrução como sob
a forma de matéria especial. Contudo, na prática, a realidade exige – por
causa do uso do neerlandês na escola “nativo-holandesa” – que seja obrigatório
o ensino do neerlandês também na escola primária. Não obstante,
esse ensino de um idioma estrangeiro tão cedo na vida escolar da criança
deve ser adiado o máximo possível. Além do mais, é importante frisar
que o ensino do neerlandês deve ser apenas como matéria no currículo
(pengetahuan), e não como língua de uso cotidiano. O professor de neerlandês
tem que ser especialmente escolhido, e não pode ser qualquer
pessoa; além do mais, o ensino do neerlandês tem que ser “sintético”,
isto é, a língua deve ser ensinada da maneira como a criança aprende sua
própria língua materna. A criança tem que aprender a falar primeiro,
sem escrever, e sem que seja incomodada pelo aprendizado de gramática.
37 O método de Dewantara soa bastante moderno, inclusive para a
época. Ele também recomenda o uso de histórias e canções no aprendizado
do idioma, sem nenhuma ênfase no ensino analítico ou gramatical.
Além do mais, durante as aulas de neerlandês, o uso de outros idiomas
na sala de aula não deve ser permitido.
Ademais, o ensino nas escolas – seja na aula de neerlandês ou não
– deve ter também um caráter moral e cultural ao mesmo tempo. Nesse
sentido, é importante usar as crônicas javanesas clássicas (chamadas
Babad), cujos heróis podem servir de modelo e exemplo. O interessante
é que os exemplos dados por ele são citações de crônicas em língua
javanesa. Depois das histórias contidas nas crônicas serem apresentadas
e discutidas – após o método sintético ter sido assim empregado – podese
passar então – e só então – ao estudo analítico da língua propriamente
dita, isto é, gramática e vocabulário.38 Da mesma maneira, devem-se
utilizar também contos folclóricos, lendas e mitos que existem na Indonésia
inteira e são conhecidos por todos. Dewantara também menciona a utilização
do teatro autóctone e da poesia, e dá exemplos de como materiais
específicos poderiam ser usados no ensino. Os conceitos mais complicados
– ligados a noções antigas e fora de uso – encontrados nos textos têm
37 Idem, p. 499.
38 Idem, pp. 502 e ss.
que ser simplificados ou então postos de lado. Essas histórias são importante
para a formação do caráter moral dos alunos (pendidikan watak).39
Dewantara enfatiza também que é necessário contar histórias usando
uma linguagem cotidiana e viva (bahasa harian, bahasa jang hidup).
Esse uso da linguagem não está vinculado ao aprendizado formal do
idioma, mas ao seu uso coloquial. Caso existam palavras pouco usadas,
tem que se usar uma paráfrase para que os alunos possam entender o
poema ou conto sem problemas. Além do mais, é muito importante ensinar
aos alunos a escrever cartas, porque estes podem se ver eventualmente
obrigados a escrevê-las, inclusive a membros de suas próprias
famílias. Em artigo de três anos mais tarde, Dewantara estipula que a
língua javanesa só deverá ser usada em toda a ilha de Java como língua
de uso comum (bahasa pengantar); contudo, nos níveis superiores, a
ênfase deve ser na bahasa Indonesia. Isto se deve ao fato de que, segundo
ele, na época existia uma nova “pressão” no sentido do “florescimento
de um sentimento novo de nacionalidade” (rasa kebangsaan baru) que
vai além do povo javanês, e relaciona-se ao surgimento de um “sentimento
de nacionalidade indonésia”.40
Em 1938, Dewantara publica um artigo denominado “Somente a
língua indonésia tem direito a tornar-se a língua de unificação”.41 Esse
artigo é originalmente uma comunicação apresentada ao Congresso da
Língua Indonésia, em Surakarta. Em 1916 o Congresso foi em Haia, e
em neerlandês, já em 1938 foi em indonésio, e na própria Java, e numa
antiga capital real javanesa. O subtítulo do artigo é: “A seu lado serão
cultivadas ainda as línguas regionais que sejam vigorosas” (Disampingnja
masih terpelihara bahasa daerah jang kuat). Esse artigo é interessante
porque contém, já no seu título e subtítulo, dois conceitos que se tornariam
lugares-comuns no estado pós-colonial: bahasa persatuan ou “língua
de unificação” ou unidade nacional, e bahasa daerah ou “língua
regional”. Essa contraposição é essencial na construção do estado-nação
indonésio: a língua de unificação é o malaio, agora denominado língua
39 Idem, p. 505.
40 Ki Hadjar Dewantara, “Bahasa Djawa sebagai bahasa pengantar disekolah mulo”, in Karya Ki
Hadjar Dewantara, pp. 506 e ss (originalmente publicado em 1936).
41 Ki Hadjar Dewantara, “Hanja bahasa Indonesia berhak mendjadi bahasa persatuan”, in Karya
Ki Hadjar Dewantara, pp. 513-519.
indonésia, enquanto as “línguas regionais” são o javanês e as outras
línguas de uso mais estritamente local. Há uma hierarquização aqui: a
nação não é contra o regionalismo, apenas, subordina-o em nome de
uma superação das diferenças no nível do estado e de um ideal de “unidade”.
Como se estivesse se defendendo (e talvez estivesse – o debate
político colonial continuou na década de 1930), Dewantara menciona
que sua posição atual não difere daquela defendida durante o Primeiro
Congresso de Educação Colonial em 1916. Dewantara resume o parecer
de Surya Ningrat em três pontos:
1. Para a unificação do povo indonésio somente a língua indonésia
tem o direito de tornar-se língua de unificação; 2. a língua
indonésia é originária da língua malaia falada nas ilhas Riau,
que contudo diferenciou-se, desenvolveu-se e simplificou-se de
acordo com as necessidades do contexto e da época; 3. os professores
nas regiões que já possuem sua própria língua, cuidadosamente
cultivada pela população local para usos sociais e culturais,
têm que empregar essa língua como língua de instrução na
sua prática pedagógica, sendo contudo também obrigados a ensinar,
em grau adequado, a língua indonésia. Isto porque nosso
mundo não é somente o mundo regional (alam daerah), e no que
diz respeito ao povo inteiro que busca um novo mundo, já existe
um mundo indonésio (alam Indonesia) vasto e amplo.42
Aqui, o mundo da região – alam daerah – é contrastado com o
mundo da nação – alam Indonesia - e a vinculação entre os dois faz-se
via a língua indonésia. Poderíamos dizer que é a língua indonésia – que
superou suas origens regionais e específicas nas pequenas, modestas e
pouco populosas ilhas Riau, adaptando-se e transformando-se através
do tempo e espaço – que cria a unidade (persatuan) do povo indonésio
(bangsa Indonesia). Assim como o malaio metamorfoseou-se em
indonésio, superando suas origens estritamente regionais, as diversas
regiões podem metamorfosear-se também na nação indonésia, sem que
por isso se percam os particularismos locais (sob condição de que sejam
vigorosos...).
42 Idem, p. 514.
Em seguida, vem uma citação muito interessante. Segundo
Dewantara, no Primeiro Congresso de Educação Colonial, em 1916, um
antigo residente neerlandês da Indonésia havia sugerido que os Indo-
Tionghwa – isto é, os chineses do arquipélago – teriam de sentir-se neerlandeses.
Um indo-chinês presente no congresso, o Dr. Yap Hong Tjoen,
gritou indignado, em alto e bom neerlandês: “Sinto-me chinês, e desse
modo sou chinês!” Dewantara comenta que do “mesmo modo nós certamente
nos sentimos indonésios, porque nos sentimos impregnados
(merasa berdjiwa) pela Indonésia”.43
Como seu compatriota chinês, Dewantara também é um falante
de neerlandês, mas nem por isso se sente neerlandês. Ele tem uma identidade
própria, compartilhada com toda uma nação. Beligerantemente,
Dewantara enfatiza que, mesmo face àqueles entre seus compatriotas
que não estão convencidos de que o indonésio é a língua de unificação
nacional, o movimento para desenvolver a língua indonésia não pode ser
sustado. Dewantara também nota que aqueles que são contra o indonésio
não se sentem unidos ao povo de toda a Indonésia e estão ainda mergulhados
nos particularismos de suas próprias regiões, daí seu medo de um
suposto “imperialismo” javanês, ou do perigo do malaio “danificar” sua
cultura regional. Outro medo – agora entre os javaneses – é de que o
indonésio possa fazer retroceder as línguas regionais e, por implicação,
suas culturas. Nada de mais falso, assegura Dewantara.
Eu mesmo, como javanês que naturalmente ama a língua
javanesa e sei que esta é empregada e cultivada por uma parcela
considerável do povo da Indonésia [...], tenho grandes esperanças
de uma vida frutífera para a língua de unidade. Desejo
que essa língua aumente a amplitude do mundo dos javaneses,
a amplitude de seu mundo espiritual e de sua sociedade ou,
ainda mais enfaticamente: essa língua nos dará status de nação
(kedudukan kebangsaan), um status nobre e glorioso.44
Dewantara acentua – dando o exemplo da manutenção da língua frísia
na Frísia, uma das províncias dos Países Baixos – que as culturas regionais
43 Idem, p. 515, ênfase no original. Note-se o uso da declaração de um chinês como exemplo de
identidade nacional bem defendida: os chineses estiveram entre os primeiros nacionalistas do
arquipélago.
44 Dewantara, “Hanja Bahasa”, p. 517, ênfase no original.
de parcelas específicas do povo indonésio não serão extintas. Existe uma
“cultura local” (kultur setempat) em cada cidade. Dewantara postula aqui
três níveis no “universo cultural” (alam-kebudajaan): local/da cidade
(tempat/kota), regional (daerah) e nacional (nasional). Esses três níveis
estão vinculados entre si de maneira concêntrica, diz ele, e se influenciam
mutuamente. Cada um desses níveis tem direito de existência. Dewantara
dá como exemplo a cidade de onde está falando, Surakarta, e sua vizinha
Jogjakarta. Ambas são “centros de cultura” (pusat kebudajaan) que se
irradia por todo o mundo javanês, são ambas capitais reais com cortes
próprias. E o povo inteiro da Indonésia poderá adotar os frutos da civilização
e cultura javanesas, assim como os da região de Minangkabau
(Sumatra), Bali e outras. Assim o “progresso da vida” (kemajuan hidup)
em Surakarta ou Jogjakarta afeta a todos em Java, assim como o progresso
da vida em Padang (Sumatra) e outras cidades e sua região vizinha afeta a
região Minangkabau. Conclui que em “seguida aos resultados do progresso
de Java, Sumatra, Bali, etc claramente poderão se tornar a matéria-prima ou
capital para o florescimento posterior da cultura da nação indonésia”.45
E Dewantara termina sua comunicação com um apelo em prol da
língua indonésia, enfatizando que o malaio é uma língua usada há muito
tempo como língua de comunicação entre os diversos grupos do país.
Além do mais, é uma língua que, apesar de ainda não estar estandardizada,
possui já uma literatura própria. Com seu uso maior na imprensa, no
ensino, em relatórios oficiais, etc, o indonésio poderá passar do estágio
de mera “língua de comunicação” (bahasa-perantaraan) para o de “língua
de cultura” (kebudajaan).46
Após o período da ocupação japonesa (1942-1945) e o da guerra de
independência (1946-1949), encontramos Dewantara escrevendo novamente
no início dos anos de 1950, isto é, no início do período independente. Em
“Línguas estrangeiras”, Dewantara escreve contra o ensino do neerlandês.47
Se em 1916 sua posição era favorável a uma expansão do neerlandês no
ensino, para que todos tivessem acesso à educação em todos os níveis, já na
45 Idem, p. 518.
46 Idem, p. 519.
47 Ki Hadjar Dewantara, “Bahasa-bahasa asing”, in Karya Ki Hadjar Dewantara. pp. 534-535
(originalmente publicado em 1951).
década de 1930 Dewantara aventou, como vimos, que o inglês seria língua
mais importante que o neerlandês, embora este ainda tivesse que ser aprendido
devido às circunstâncias coloniais. Agora, contudo, Dewantara é contra
o uso do neerlandês. Seu curto artigo são regras para o aprendizado e
ensino de línguas estrangeiras: não se pode colocar um fardo demasiado
pesado sobre os ombros dos alunos, ensinando-lhes mais que duas línguas
estrangeiras ao mesmo tempo, já que também existem ainda as línguas regionais
no currículo. Ademais, a língua estrangeira deve ser usada apenas no
interesse do próprio ensino de idiomas. Na escola primária (sekolah rendah)
não se pode ensinar idiomas estrangeiros, a não ser em casos especiais (por
exemplo, no caso do inglês, devido à sua utilidade como meio de comunicação
internacional). Nenhuma língua estrangeira deve ser usada como meio
de comunicação geral. O inglês deve ser matéria obrigatória para todos os
alunos na escola média, inclusive nas escolas particulares. Interessantemente,
Dewantara considera como línguas estrangeiras a serem ensinadas não só as
línguas ocidentais, mas também, eventualmente, línguas orientais como o
árabe, o urdu e o chinês, que devem, frisa, ser consideradas no mesmo nível
que as línguas européias. Também aventa a criação de uma escola especial
só para línguas estrangeiras, de modo a não sobrecarregar o currículo. Com
relação ao neerlandês, diz:
Em princípio o neerlandês deve ter o mesmo status das outras
línguas estrangeiras, em especial as do Ocidente. Existem interesses
especiais que podem ser considerados ou vistos como
instrumentos poderosos no sentido de dar um lugar especial a
essa língua, acima daquele das outras línguas estrangeiras,
embora, naturalmente, essa seja uma perspectiva errônea [...].
A língua neerlandesa como língua de conhecimento pode ser
substituída por outras línguas estrangeiras, substituição que pode
ser feita com vantagem. (Os círculos culturais dos Países Baixos
não são tão amplos como os círculos culturais das nações
inglesa, francesa, alemã e outras).48
Finalmente, Dewantara espera que o governo inicie um esforço em
larga escala para traduzir todos os livros importantes em vários idiomas
48 Idem, p. 535.
estrangeiros, especialmente em neerlandês - língua na qual existe muita
informação sobre a Indonésia - para o indonésio. Isto, para que a nação
indonésia não se veja dependente de outras nações no campo cultural.
Em outro artigo, “A questão da língua neerlandesa é uma questão
de luta nacional”, Dewantara adota um tom bastante beligerante.49 Os assuntos
tratados são a utilização do neerlandês como língua de comunicação
entre professores universitários e seus alunos, e sua introdução eventual
como matéria de ensino na escola média. Dewantara repete aqui várias
recomendações de seu artigo anterior, enfatizando, contudo, que o inglês
tem que ser introduzido, mas não no lugar do neerlandês no período
colonial, isto é, como “uma segunda língua nacional”. Seu status é apenas
de língua internacional ensinada como língua estrangeira. Dewantara em
seguida sopesa os argumentos daqueles que são pró ou contra o uso do
neerlandês. Nota que a União Indonésia – Países Baixos já não existia
mais então.50 Assim, o neerlandês não deve ser introduzido como língua
estrangeira em nenhum nível do ensino. No ensino universitário, não deve
ser permitido aos professores que dêem aulas em neerlandês, nem recomendem
a leitura de bibliografia em língua neerlandesa. Há que notar que
na época a maioria dos professores universitários era ainda neerlandesa.
Dewantara recomenda ao governo aumentar o número de professores universitários
indonésios. Professores estrangeiros deveriam vir de outros países
que não os Países Baixos, e deveriam dar sua matéria em língua indonésia
para os alunos. O governo deve promover a tradução de livros em línguas
estrangeiras, e criar para isso uma Fundação de Tradução que estimule as
publicações privadas no setor.51 Sob circunstância alguma, acentua
Dewantara, deve-se permitir que professores neerlandeses, que não sabem
falar o indonésio, dêem aulas na universidade em neerlandês só para servir
aos interesses de uns poucos. A imensa maioria dos alunos não sabe falar
neerlandês, e por isso não é justo que haja aulas nesse idioma. Além do
49 Originalmente parte de um relatório oficial do governo. Ki Hadjar Dewantara, “Masalah bahasa
Belanda masalah perjuangan kebangsaan”, in Karya Ki Hadjar Dewantara, pp. 535-540 (originalmente
publicado em 1952).
50 Uni Indonesia-Belanda, estado federado que existiu entre 1949 e 1952 numa tentativa dos Países
Baixos de manter alguma influência no estado pós-colonial. Era uma espécie de Commonwealth
com apenas dois membros.
51 Dewantara, “Masalah bahasa Belanda”, p. 539.
mais, isso poderia perpetuar a força do neerlandês na universidade, o que
não é desejável de um ponto de vista nacional.
A trajetória de Dewantara/Surya Ningrat é interessante porque
ela inclui tanto o período colonial tardio como o período pós-colonial.
Nessa trajetória, dá para notar que Dewantara tornou-se gradualmente
mais militante e pró-nacionalista à medida que o tempo passa, chegando
ao início dos anos de 1950, quando o estado nacional surge. Em 1957,
Sukarno nacionalizaria todas as empresas neerlandesas no arquipélago,
expulsaria todos os cidadãos neerlandeses, incluindo muitos nativos do
arquipélago com passaportes neerlandeses, e romperia relações diplomáticas
com os Países Baixos. O neerlandês – ainda ensinado no período
pós-colonial em algumas escolas particulares, onde era língua veicular –
é formalmente proibido no país todo. Essa data marca assim o fim do
ensino neerlandês no arquipélago, que só viria a ser retomado anos mais
tarde, em escolas de idiomas e instituições universitárias, sob o patrocínio
do governo neerlandês. É interessante notar como a questão lingüística
aqui está intimamente ligada à questão nacional, e que a luta pelo
idioma, como diz Dewantara, é também a luta pela nação. No ambiente
consideravelmente mais radicalizado do pós-guerra, a posição do neerlandês
tornou-se literalmente insustentável devido à sua clara vinculação
com o colonizador. Nos anos de 1950 e 1960, portanto, a língua indonésia
estabeleceu-se em todos os níveis do sistema educacional e como língua
nacional incontestada, situação que se mantém até hoje.
A importância de Dewantara, tanto na área de ensino como no nacionalismo
indonésio de modo geral, é relativamente grande. Pode-se dizer,
sem exagerar muito, que ele foi talvez um dos principais responsáveis pela
elevação do indonésio a língua nacional do estado pós-colonial, embora
nesse empreendimento não estivesse em absoluto sozinho após a década de
1920. Em particular, como indica Kees Groeneboer, a atitude neerlandesa
com relação ao próprio idioma neerlandês ao longo da história colonial foi
muito importante, assim como o uso oficial e semi-oficial do malaio.52 Em
realidade, o trabalho de Groeneboer – uma história detalhada do uso do
idioma neerlandês na sociedade colonial através do tempo – é uma fonte
52 Groeneboer, Weg tot het Westen.
importante para compreender os diferentes aspectos lingüísticos, tanto
da política colonial como dos diferentes setores da sociedade colonial.
Além do mais, Groeneboer usa tanto fontes neerlandesas como fontes
“nativas”, seja em neerlandês ou em malaio-indonésio, o que torna o seu
trabalho muito rico para entender o contexto no qual a obra de Dewantara
se desenvolveu (a sua obra também é mencionada e usada por
Groeneboer). A situação colonial no campo lingüístico e do ensino era,
como mostra, incrivelmente complexa e cheia de nuanças intricadas.
Em primeiro lugar, a “luta lingüística” preconizada por Surya
Ningrat, já em 1916, não era em absoluto tão clara e tão polarizada como
poderíamos chegar a crer, nem mesmo nos anos finais da era colonial
quando o conflito estava chegando talvez ao seu auge. Em realidade, não
só a voz de Surya Ningrat/Dewantara é uma voz totalmente pioneira – e
única –, em 1916, ao preconizar o malaio como língua de unidade nacional
da Índia, como é uma voz que também retoma antigos argumentos, embora
em nova roupagem. Em segundo lugar, há que notar a situação pouco
antes da virada do século: em 1890, apenas cinco (sic) nativos estudavam
na escola média em toda a colônia (e nenhum chinês). Em 1900, havia
treze nativos e quatro chineses no ensino médio. Quanto a eventuais estudantes
universitários do arquipélago nos Países Baixos, que não fossem
europeus, até 1900 só houve onze (este é o número de estudantes para todo
o século XIX), a maioria dos quais estudara lá na década de 1890. Em
1907, este número ainda era de apenas vinte nativos, principalmente filhos
(homens) de príncipes locais ricos que os enviavam para melhorar seu
domínio do neerlandês na metrópole. Nesse sentido, a Índia Neerlandesa
apresentava um quadro de educação vastamente diferente da situação bastante
mais promissora vigente na Índia Britânica ou nas Filipinas espanholas,
onde existiam elites substanciais educadas nas escolas coloniais.
Para todos os efeitos práticos, simplesmente não existiu educação governamental
para nativos antes do século XX.53
53 Idem, p. 214, n. 106. Naturalmente, existiam escolas autóctones que ensinavam o Alcorão e outras
disciplinas, além de existir, entre as famílias mais abastadas, o ensino particular em casa. Entretanto,
a Índia Neerlandesa era de longe, no universo colonial asiático da época, uma das colônias mais
atrasadas no campo da educação. Ver Groeneboer, Weg tot het Westen, p. 230, n. 118.
A situação mudou muito após 1900, com a entrada tanto de chineses
como de nativos nas escolas, seja do governo ou particulares, e a criação
de muitas escolas. Em realidade, no final da era colonial a demanda
por educação – e em língua neerlandesa – era tamanha que surgiria o
fenômeno das wilde scholen ou “escolas selvagens”, como o governo colonial
chamava as escolas particulares cuja existência não autorizava. Houve
assim uma verdadeira explosão da educação no final do período colonial
no arquipélago. Só no setor mais minoritário da educação na colônia, o
da educação que usava o neerlandês como língua de instrução, entre 1900
e 1939, 219.655 alunos se formaram nas escolas do governo.54 Embora
isso seja pouco mais que uma gota d’água no oceano demográfico de alunos
em potencial, e a maioria das crianças na época colonial jamais tenha
freqüentado uma escola, e, portanto, essa cifra só diga respeito à mais
privilegiada camada da sociedade colonial, ela constitui, mesmo assim,
uma diferença substancial em relação à situação antes de 1900.55 A necessidade
do capital metropolitano e estrangeiro de força de trabalho mais
qualificada, assim como a da própria sociedade colonial, exigiu a instalação
e expansão de todo um sistema de escolas para europeus, nativos e
chineses, que não cabe examinar aqui, mas que sem sombra de dúvida
difundiu enormemente o uso do neerlandês no arquipélago. No final da era
colonial, nunca houve antes tantos usuários do idioma.
Groeneboer mostra claramente que não havia uma política colonial
com relação ao idioma e Surya Ningrat se queixara, já em 1916, de
não haver uma política com relação ao ensino. Na virada do século XVIII
para o XIX, após quase duzentos anos de presença neerlandesa no arquipélago,
o neerlandês era uma língua praticamente morta, só usada por
homens de origem metropolitana em seus escritórios.56 Difundir a língua
– e com ela a cultura metropolitana – não foi uma política colonial consciente
antes de bem entrado o século XX, e mesmo então não se podia
54 Groeneboer, Weg tot het Westen, Apêndice XVII, p. 496. Desse número, 85.920 eram europeus,
106.070 nativos e 27.665 “orientais estrangeiros” (quase sempre chineses).
55 O último censo colonial, de 1930, dá a população total do país como sendo 60.727.233
(Groeneboer, Weg tot het Westen, Apêndice IV, p. 477). Atualmente, a população está em mais
de 215 milhões.
56 Groeneboer, Weg tot het Westen, p. 215. Para a situação lingüística antes do século XIX, ver
Groeneboer, Weg tot het Westen, pp. 16-96.
dizer que houvesse uma política muito consistente nesse sentido. Nos
séculos XVII e XVIII, o português do Oriente se impôs como língua
colonial em Batávia, e em seguida, com seu desaparecimento, instalouse
o malaio, que já existia antes também em Batávia. Em realidade, apesar
de o malaio estar difundido no arquipélago desde a época pré-colonial,
a administração colonial encarregou-se de difundir seu uso ainda mais,
já que era a língua dos baixos escalões do governo. Com a unificação do
arquipélago, após 1900, o malaio difundiu-se ainda mais, a ponto de ser
chamado por alguns povos de outras ilhas de bahasa Belanda, ou “língua
holandesa”.57 Isto se devia ao fato de que o malaio chegou a essas
ilhas freqüentemente junto com a administração colonial. Também a
evangelização – protestante, sobretudo – encarregou-se de difundir ainda
mais o uso do idioma no arquipélago. Como era impossível usar o
neerlandês, e havia muitas línguas locais, muitas vezes ininteligíveis para
a maioria dos administradores coloniais, o uso do malaio se impôs como
solução pragmática. Em realidade, como frisa Groeneboer ao longo de
sua obra detalhada, o malaio surgiu como língua comum devido à falta
de uma política colonial de difusão do neerlandês. O uso do malaio é
assim o resultado de uma escolha, mas uma escolha implícita, não declarada,
por parte do governo colonial.
Em realidade, embora a proposta do uso do malaio como língua
nacional na boca de um nativo tivesse, pelo que sabemos, que esperar
Surya Ningrat e seu parecer de 1916, já no século XIX existiam vozes
neerlandesas que faziam um apelo muito semelhante ao dele, embora
não num contexto nacionalista. Assim, em 1891, o lingüista neerlandês
A.A. Fokker fez um apelo em prol da introdução generalizada do malaio
– falado nas ilhas Riouw ou Riau, considerado mais puro – como “meio
de civilização” (beschavingsmiddel) e como língua de unidade administrativa
no arquipélago. Também o famoso jornalista e escritor colonial P.
A. Daum propunha em 1890 que o malaio deveria se tornar o portador
de uma “civilização superior” no arquipélago.58 Ou seja, muito antes de
Surya Ningrat, o valor do malaio como língua para a unidade de todo o
57 Por exemplo, os Minahassa em Célebes setentrional. Groeneboer, Weg tot het Westen, pp. 228-
229, n. 115.
58 Groeneboer, Weg tot het Westen, p. 230.
arquipélago já era óbvio para várias personalidades européias do mundo
colonial. Isto se deve não necessariamente ao caráter presciente dessas
pessoas, embora não se deixe de sentir sua presciência ao ler suas citações
a respeito, mas ao fato de que já antes de 1890 a Índia Neerlandesa
estava numa fase bastante avançada de ocupação efetiva – militar e administrativa
– de vastas regiões do arquipélago que até então só eram
nominalmente neerlandesas. Desse modo, o mundo colonial do arquipélago
como um todo em sua imensa variedade – e que daria eventualmente
origem ao estado pós-colonial indonésio – descortinava-se então e
pela primeira vez como unidade político-administrativa, e nada melhor
que um olhar neerlandês para perceber isso. Naturalmente, nem Fokker
nem Daum eram contra o uso e mesmo a difusão do neerlandês como tal,
apenas, a realidade local impunha o malaio com muita força como língua
do arquipélago.
Contudo, após 1900, não só a administração colonial continuou a
usar e difundir o malaio passivamente, digamos, como começou a tomar
medidas mais concretas no sentido de promover o idioma. Em 1908, o
governo estabeleceu uma Commissie voor School en Volkslectuur ou
Comissão de Leitura Escolar e Popular, mais conhecida por seu nome
malaio, Balai Poestaka (ou, na grafia pós-colonial, Balai Pustaka). O
objetivo dessa comissão – que atuou durante toda a época colonial tardia
– era fornecer livros de leitura para desenvolver a educação popular nas
ilhas. Os livros, publicados e difundidos pela própria Balai Pustaka a
preços acessíveis, e também através de famosas bibliotecas itinerantes,
eram em neerlandês e em línguas locais, inicialmente, sobretudo em
javanês, sundanês, falado em Java ocidental, madures, falado na ilha de
Madura e, last but not least, malaio.59 Em especial, a Balai Pustaka
utilizava o malaio para a difusão de idéias e noções modernas, já que há
séculos o malaio era o veículo de transmissão daquilo que vinha de fora.
Em 1911, passou-se a traduzir para o malaio uma literatura de “entretenimento”
e de “desenvolvimento”, originalmente publicada em línguas
ocidentais, e ao redor de 1920 já se publicavam obras originalmente
59 Idem, p. 319, n. 76. À página 320 há uma fotografia de uma biblioteca itinerante da Balai
Pustaka.
escritas em malaio também. Além disso, em 1919 criou-se a primeira
“biblioteca popular malaia”, das várias que existiram antes que o programa
de criação de bibliotecas deixasse de existir em 1928 por falta de
verbas.60
Em 1914, cria-se – a partir das “escolas nativas de primeira classe”
– a escola “nativo-holandesa”, em torno da qual giraria a polêmica
sobre a língua de instrução mais adequada. Embora se acreditasse, tanto
entre os neerlandeses como entre os “nativos”, que o neerlandês deveria
ser a língua veicular de ensino, era-se de opinião também que os idiomas
nativos não deveriam ser negligenciados no currículo, o que poderia levar
a uma “ocidentalização” e “desnacionalização” indesejável dos alunos
(e aqui, interessantemente, europeus e “nativos” concordavam em
grande medida). Em 1916, uma comissão governamental concluiu que
deveria haver uma maior difusão do ensino do malaio em todo o sistema
escolar do arquipélago, inclusive como matéria a ser dada nas escolas
primárias européias exclusivamente de língua neerlandesa, com o inglês,
francês e alemão como línguas estrangeiras, seguindo o modelo metropolitano.
61 Além do mais, a administração passou a envidar esforços no
sentido de estandardizar pela primeira vez a língua: em 1902 Abendanon,
o secretário colonial para a educação, declarou obrigatório nas escolas o
uso de uma ortografia oficial publicada no ano anterior, e que utilizava
caracteres latinos.62 Nas ilhas fora de Java, onde o governo considerava
as línguas locais inadequadas para o ensino, talvez por serem demasiadamente
“primitivas”, usava-se o malaio nas escolas, o que difundiu
enormemente a língua nessas regiões. Ou seja, antes de Surya Ningrat já
havia um reconhecimento da importância do malaio na vida colonial por
parte da própria administração colonial, e nunca antes o malaio viu-se
assim tão usado e difundido. Em 1918, finalmente, o malaio é aceito
como língua oficial do novo parlamento colonial, ao lado do neerlandês,
60 Groeneboer, Weg tot het Westen, p. 412, n. 170.
61 Idem, pp. 332-333.
62 Idem, n. 167. Essa ortografia permaneceu oficial até 1972, quando se introduziu a ortografia
atual. O malaio se escrevia tradicionalmente em caracteres árabes. Além do mais, a língua esteve
historicamente vinculada à expansão do Islã no arquipélago. A escolha oficial da escrita latina,
portanto, não foi inocente. Várias outras línguas locais se escreviam usando o alfabeto árabe.
embora na prática quase ninguém o utilizasse, tanto membros europeus
como nativos e chineses preferiam empregar o neerlandês. Contudo, isso
tudo não levou a uma escolha deliberada e explícita do governo colonial
em prol da língua malaia: não só outras línguas nativas continuaram a
ser usadas, como continuou a difusão – ainda que limitada – do uso do
neerlandês. Além do mais, o neerlandês continuou sendo o que havia
sido desde os tempos da Companhia das Índias: a língua exclusiva do
alto-escalão colonial.
Essa política – implícita – do governo colonial teve conseqüências
interessantes e importantes para o futuro estado pós-colonial. Em primeiro
lugar, criou uma situação lingüística na colônia que era em realidade
extremamente complexa. Apesar de ser usado desde a época précolonial
como língua franca no arquipélago, o malaio comumente empregado
e entendido era o chamado Melayu Pasar ou “malaio de bazar”,
língua que não era estandardizada e que podia variar enormemente ao
longo do arquipélago. Essa língua era geralmente apenas falada, ou simplesmente
compreendida. Ao lado desta, existiu também o chamado
Melayu Tinggi ou “alto malaio”, o antigo malaio clássico falado nas
cortes dos sultões malaios em Sumatra, Península Malaia e Bornéu, que
era escrito em caracteres árabes e não era usado normalmente em outras
regiões. Finalmente, o malaio da administração colonial era o Melayu
Dinas ou malaio administrativo, uma espécie de malaio criado pelo governo
para seus próprios fins. Com a promoção da língua pela Balai
Pustaka, passou a existir também um malaio da Balai Pustaka, isto é,
uma forma de malaio escrito patrocinada por essa agência. O governo
tentava promover o malaio baseado no uso supostamente puro da língua
nas ilhas Riau – pequeno arquipélago em frente a Singapura. Além do
mais, existiu também um Melayu Tionghoa usado pela população chinesa
- e que continha palavras de origem chinesa -, além do famoso Melayu
Betawi, ou malaio de Batávia. A própria variedade de nomes já indica a
falta de uniformidade do idioma. Com o surgimento de uma imprensa e
uma literatura (moderna) em malaio a partir de 1880, das mãos dos sinojavaneses,
o malaio passou a ter uma presença escrita cada vez mais
importante. Junto com o governo colonial, ou talvez até mais que ele, os
chineses no arquipélago, que em sua maioria não falavam chinês, foram
os mais importantes difusores e promotores do idioma, já que antes do
período pós-colonial a maior parte do jornalismo e literatura em malaio
era de origem chinesa.63
Contudo, esse imenso florescimento do idioma não o levou realmente
a concorrer com o neerlandês: a “luta de idiomas” proposta por
Surya Ningrat, em 1916, era uma realidade muito distante em toda a era
colonial e permaneceria assim até o fim. Isto porque o malaio e o neerlandês
ocupavam de fato nichos muito diversos na sociedade colonial. A
língua de acesso ao conhecimento técnico e científico do Ocidente, assim
como à cultura ocidental de modo geral, permaneceu sendo o neerlandês,
que também era claramente a língua da alta elite colonial – européia,
chinesa ou nativa –, assim como era a língua de ensino por excelência no
ensino ginasial, secundário e universitário. Isto é, não só era a língua da
alta administração colonial e do ensino superior – onde era usado em
caráter exclusivo –, como também era a língua da alta sociedade e da
camada mais escolarizada e próspera da população colonial. Não havia
aqui nenhuma possibilidade de competição entre os dois idiomas, a ponto
do conhecido nacionalista javanês Tjipto Mangoenkoesoemo, mencionado
por Surya Ningrat, propor a substituição pura e simples do javanês
pelo neerlandês como língua do país (sua proposta era de criação de uma
cultura autóctone em língua neerlandesa). Esse apelo não era em absoluto
surpreendente: ao contrário de Surya Ningrat que era, na Primeira
Guerra Mundial, uma voz pioneira e quase isolada, a elite nativa, assim
como a elite chinesa, queria aprender neerlandês. Sua luta era pela extensão
do ensino em língua veicular neerlandesa para outras camadas da
população, uma luta que se travou em vão, já que o governo colonial
nunca quis pagar as escolas necessárias.
O próprio Surya Ningrat (e, mais tarde, Dewantara) enfatiza em
seus trabalhos que os “intelectuais” nativos, assim como os médicos, etc
não usam entre si suas línguas maternas e nem mesmo o malaio. Além
disso, freqüentemente não sabem bem seus próprios idiomas, ou não
conseguem escrever neles, já que foram educados desde a escola primária
exclusivamente em neerlandês. Seu mundo social, intelectual e pro-
63 Leo Suryadinata, Sastra Peranakan Tionghoa Indonesia, Jacarta, Grasindo, 1993.
fissional freqüentemente gira em torno do uso exclusivo ou quase exclusivo
do neerlandês. O nacionalista indonésio típico era aquele que pensava
em neerlandês, escrevia nessa língua e procurava viver o máximo
possível dentro do âmbito desse idioma. Como o próprio Sukarno, fundador
do estado pós-colonial, escreveu em sua autobiografia com relação
ao neerlandês: “[t]ornou-se a língua na qual eu pensava. Ainda hoje
xingo automaticamente em neerlandês. Caso ore a Deus, faço-o em neerlandês.”
64
Na década de 1920, as próprias discussões que levaram ao estabelecimento
do malaio como idioma do nascente nacionalismo, que se
autodenominou indonésio, eram feitas em neerlandês. Nesse idioma se
discutia, entre “nativos”, a necessidade de estabelecer o malaio como
idioma nacional, de usá-lo tanto quanto possível em todas as esferas da
vida.65 Isto parece quase cômico, mas em realidade essa ubiqüidade do
uso do neerlandês entre a classe intelectual e nacionalista da colônia era
bastante compreensível, assim como o fato de que muitos desses nacionalistas
não conseguiam se expressar bem em malaio, muito menos tão
bem como se expressavam em neerlandês. Para eles, o neerlandês haviase
tornado uma “segunda língua materna”, como propõe Groeneboer, e o
malaio lhes era pouco familiar. Porque então, podemos nos perguntar, na
década de 1920 estabeleceu-se o malaio como língua de unidade da futura
nação indonésia, em lugar do neerlandês, como havia proposto
Mangoenkoesoemo?
A resposta é complexa. Em primeiro lugar, a escolha do malaio
como língua indonésia não implicou em absoluto, para os nacionalistas,
a rejeição do neerlandês. O malaio fora escolhido por razões práticas:
não era a língua da elite, mas era a única língua na qual a elite podia
comunicar-se com a população do arquipélago. Além do mais, o malaio
possuía duas vantagens importantes: era língua franca, por isso muito
difundida e, ao contrário do javanês, por exemplo, não estava associada
a nenhuma cultura de corte, a um grupo étnico específico ou a uma única
ilha. Apesar de haverem malaios e mesmo cortes malaias, eram
64 Sukarno, Sukarno. Een autobiografie uit de mond van de president opgetekend door Cindy
Adams, Haia, 1967, pp. 81-82. Citado em Groeneboer, Weg tot het Westen, p. 415.
65 Groeneboer, Weg tot het Westen, p. 414.
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demograficamente discretos, e por causa da difusão através do comércio,
o malaio não era associado a ninguém ou a nenhum grupo em particular.
Ele não estava assim vinculado a uma cultura específica e era,
tradicionalmente, em toda parte, um veículo de transmissão de idéias, e
por isso era considerado adequado para a transmissão das idéias modernas
esposadas pelos nacionalistas.66 Existe também um motivo religioso,
o malaio era tradicionalmente associado ao Islã, religião dominante no
arquipélago, enquanto que o neerlandês era associado ao cristianismo.
Ou seja, o malaio foi uma escolha muito pragmática, como os próprios
textos de Surya Ningrat/Dewantara – um javanês que declara gostar de
sua própria língua materna – indicam.
A escolha do malaio como língua da nação pelos nacionalistas
também era uma resposta pragmática à política governamental, que nunca
quis difundir o neerlandês entre a população, mas só ensiná-lo à elite
nativa do arquipélago, na medida em que houvesse, nas palavras de
Groeneboer, uma “necessidade socioeconômica” que o exigisse.67 Citando
um importante educador e nacionalista, Takdir Alisjahbana,
Groeneboer indica que havia uma imensa demanda nativa – e não só da
elite – por educação em neerlandês. Não se tratava de amor à língua
neerlandesa nem mesmo à pátria neerlandesa em si, mas uma demanda
vinculada ao acesso à modernidade e ascensão social. Como vimos acima,
o sistema de educação para nativos – nas escolas tão elegantemente
chamadas de “segunda classe” pelo governo colonial e nas escolas de
aldeia – em línguas nativas era um beco sem saída que não dava nenhum
acesso aos patamares superiores do sistema educacional, mas somente
visava formar artesãos, operários e camponeses úteis para o estado e
capital coloniais. Só a educação em neerlandês dava acesso aos ensinos
ginasial, secundário e universitário, únicos que podiam promover a ascensão
social do aluno. Tendo fornecido ensino em neerlandês à elite
nativa e chinesa, contudo, o governo colonial, a partir de 1925, decidiu
economizar e não expandir o sistema através da criação de mais escolas.
Assim, só a elite, e o grupo europeu como um todo, teve escolas em
66 Idem, p. 416.
67 Idem, p. 416. Ou seja, na medida em que o estado e o capital colonial e metropolitano o necessitassem.
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número suficiente. Ora, uma vez criada a demanda por educação, ela
não poderia mais ser contida. A demanda – tanto nativa como chinesa –
por acesso à educação em língua neerlandesa não parou de crescer. O
fato do governo colonial nunca ter atendido a essa demanda é uma razão
importante na compreensão do pensamento nacionalista.
Para piorar, o governo colonial nos anos 1920 considerou que, face
ao crescente nacionalismo nativo, difundir ainda mais o uso do neerlandês
seria criar todo um witte-boorden-proletariaat ou um “proletariado de
colarinho branco”. Este seria um grupo sem funções econômicas claras na
sociedade colonial, e politicamente perigoso. Vinculada à necessidade de
restringir o orçamento colonial, e à opinião de que não havia postos de
trabalho suficientes para egressos do sistema escolar em língua neerlandesa,
essa importante razão política levou a uma prática concreta de restrição
do ensino e difusão do neerlandês no arquipélago. O que foi virtualmente
a última oportunidade de difundir o idioma na época colonial foi
assim posta de lado pelo governo, ainda que as discussões em torno do
neerlandês continuassem até o final da era colonial com o caráter de debate
teórico para o futuro da Índia, com os debatedores naturalmente sem
saber que a colônia estava com os dias contados. Groeneboer sugere –
corretamente, creio – que essa política governamental restritiva com relação
ao neerlandês foi fundamental na escolha nativa do malaio como língua
nacional, já que tornou essa escolha a única possível.68 O paradoxo de
uma elite altamente neerlandesada – que fala e pensa e, como no caso de
Sukarno, até xinga e ora em neerlandês – escolhendo o malaio como língua
nacional é assim apenas um paradoxo aparente.
Essa elite escolheu o malaio porque ela é neerlandesada, não a
despeito desse fato. O neerlandês permitiu que essa elite olhasse de fora,
por assim dizer, as sociedades tradicionais de onde provinha, e se informasse
sobre os movimentos de emancipação nacional em toda a Ásia,
assim como sobre as diversas correntes políticas na Europa e no mundo.
Essa elite foi assim o primeiro grupo colonial não-europeu a olhar a
sociedade colonial como um todo, e não apenas como “Java”, “Bali”,
“Sumatra”, etc. Seu olhar – educado nas escolas coloniais - permitiu que
68 Groeneboer, Weg tot het Westen, p. 417.
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se descobrisse como “índica” ou, logo depois, “indonésia”, e não apenas
“javanesa” ou “balinesa”. Esse olhar crítico e nacionalista, que descobria
as limitações do regionalismo e do suposto “atraso” das sociedades
autóctones em relação às sociedades ocidentais, construiu uma visão da
sociedade pós-colonial, o que lhe permitiu fazer planos para a formação
desta última, como no caso de Surya Ningrat/Dewantara. Groeneboer
cita o mais famoso estudante do arquipélago nesse sentido, Benedict
Anderson. “É bastante paradoxal, mas a difusão do indonésio como língua
nacional só foi possível uma vez que o neerlandês houvesse sido
internalizado como língua da intelligentsia: só então pôde o indonésio ser
desenvolvido para receber o novo pensamento, e em seguida difundi-lo
mais amplamente dentro da sociedade colonial”.69
Interessantemente, Anderson acrescenta que o uso do malaio não só
permitia a transmissão ao povo de idéias adquiridas através do neerlandês,
mas também permitia relacionar-se socialmente de uma maneira essencialmente
holandesa – isto é, de maneira não tradicional e não hierárquica -
sem por isso ter que se utilizar o neerlandês.70 Sukarno – o mais famoso
político indonésio da história – é sem dúvida o exemplo paradigmático do
intelectual nacionalista e altamente neerlandesado que preconiza o uso do
malaio. Em sua autobiografia, escrita no final de sua vida, diz:
Acredito que tenhamos primeiro que aprender perfeitamente
nossa própria língua. Concentremo-nos de agora em diante na
existência do malaio. E se tivermos mesmo assim que aprender
uma língua estrangeira, que esta seja o inglês, que é atualmente
a língua diplomática.
Os neerlandeses são brancos. Nós somos marrons (bruin). Eles
têm cabelos loiros e cacheados. Nosso cabelo é liso e preto. Eles
moram a milhares de quilômetros daqui. Por que devemos então
falar o neerlandês?71
69 Esse é o mesmo Benedict Anderson conhecido por seu Imagined Communities, e que estuda a
Indonésia há quatro décadas: “The languages of Indonesian Politics”, in Benedict Anderson,
Language and power. Exploring political cultures in Indonesia, Ithaca e Londres, Cornell
University Press, 1990 (originalmente publicado em 1966), pp. 123-151, apud Groeneboer, Weg
tot het Westen, p. 418.
70 Anderson, “The languages”, p. 139, apud Groeneboer, Weg tot het Westen, p. 418.
71 Apud Groeneboer, Weg tot het Westen, p. 413.
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Como nota Groeneboer, antes da Segunda Guerra Mundial, o neerlandês
não era uma língua inimiga ao contrário do que poderíamos acreditar
lendo Dewantara ou Sukarno, nos escritos do período pós-colonial. O
neerlandês era, por excelência, o portão para o Ocidente, ainda que isto se
desse, como frisou Dewantara, por razões meramente “incidentais”, isto é,
por razões históricas – o fato da colonização neerlandesa no arquipélago.
72 Os nativos não morriam de amores pela língua, poderíamos dizer,
mas ela era, na prática, sua via de acesso ao mundo fora do arquipélago, e
nesse sentido ela lhes era essencial. Contudo, ela não cabia, por razões
igualmente pragmáticas, em seus planos para o estado pós-colonial
indonésio, onde o lugar de honra foi dado ao malaio, metamorfoseado em
“indonésio”, único veículo possível para o “desenvolvimento” nacional.
Contudo, essa narrativa é consistente demais para ser um retrato
acurado da realidade colonial da época. Isto é, ela deixa de lado uma imensa
ambigüidade intrínseca que era, ao que parece, o pão cotidiano da situação
colonial em geral e da lingüística em particular. Em 1928, por exemplo,
várias organizações de nativos e assessores nativos pediram ao governo
a retirada do malaio do currículo das escolas “nativo-holandesas” para
sobrar mais horas para o ensino do neerlandês.73 Ora, foi exatamente em
1928 que, durante o Segundo Congresso da Juventude Indonésia – unindo
as associações Jovem-Java, Jovem-Sumatra, Jovem-Ambon, Jovem-
Minahassa, Jovem-Batak e outras – declarou-se o malaio como língua do
futuro estado-nação indonésio. Em famoso juramento feito pelos jovens,
declarou-se (e coloco aqui também o original em malaio, por ser uma das
frases mais famosas do nacionalismo indonésio):
Kami poetera dan poeteri Indonesia mendjoendjoeng bahasa
persatoean, bahasa Indonesia (Nós, filhos e filhas da Indonésia,
veneramos a língua de unidade, a língua indonésia).74
72 É muito interessante notar que o histórico aqui é transmutado no meramente “incidental”. Em
lugar de invocar uma tradição, Dewantara se livra dela: o colonialismo neerlandês não tem nenhuma
validade maior ou ulterior para o devir da nação indonésia.
73 Groeneboer, Weg tot het Westen, p. 419, n. 179. O governo efetivamente retirou o malaio do
currículo nos anos de 1930 declaradamente por razões orçamentárias, mas na realidade porque o
nacionalismo estava esposando o idioma como idioma nacional.
74 Groeneboer, Weg tot het Westen, p. 414, n. 173. Sobre as associações de juventude (criadas na
década de 1910), ver J.J.P. de Jong, De waaier van het fortuin. De Nederlanders in Azië en het
Indonesische Archipel 1595-1950, Haia, Sdu, 1998, pp. 453-454.
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Este é o chamado “Soempah Pemoeda” ou “Juramento dos Jovens”.
O Segundo Congresso da Juventude Indonésia ficou famoso como
o momento em que o movimento nacionalista aceitou a denominação
“Indonésia” e “indonésio” para o estado-nação. Significativamente, aqui
a nação é definida, mais uma vez, por seu idioma de unidade.
Dez anos depois, no Congresso da Língua de 1938, em Surakarta,
em que Dewantara participou, foi decidido que dali em diante, em todas
as ocasiões públicas, pessoas e organizações nativas só usariam o malaioindonésio.
Contudo, não só o neerlandês continuou sendo usado em público
– por exemplo, no parlamento – por organizações e personalidades
nativas, como também freqüentemente se discutia a importância e o valor
do malaio-indonésio em neerlandês. Ademais, os anos de 1930 viram
uma enorme expansão das chamadas “escolas selvagens” (wilde scholen),
escolas nativas particulares que o governo não reconhecia e que haviam
surgido no início dos anos de 1920 para tentar dar conta da enorme
demanda por educação. Nessas escolas – inteiramente controladas e financiadas
por nativos – o ensino do neerlandês era muito importante.75
Significativamente, as mais famosas escolas desse tipo eram denominadas
Taman-Siswa, ou “Jardins de Alunos”, foram fundadas, com uma
orientação nacionalista, por ninguém menos que o próprio Ki Hadjar
Dewantara em 1921, e expandiram-se até o final da era colonial.76
As escolas Taman-Siswa naturalmente seguiam as prescrições
pedagógicas do próprio Dewantara. A principal delas era que, embora
fosse desejável o ensino unicamente em línguas locais, o neerlandês era
imprescindível para a ascensão social. Contudo, o neerlandês não era
ensinado nos primeiros anos, só nas classes mais avançadas, onde era
introduzido em várias disciplinas – nas escolas públicas, só a partir de
1932 é que esse método gradual é aplicado; antes, a criança sofria uma
75 Groeneboer, Weg tot het Westen, p. 419 e, para uma descrição detalhada, p. 365 e seguintes.
Essas escolas também surgiram porque certos setores nativos sentiram a necessidade de escolas
que levassem em consideração determinadas correntes políticas ou religiosas (as escolas do governo
eram laicas – o que para muitos nativos significava que eram cristãs – e pró-coloniais).
Havia escolas “selvagens” comunistas e islâmicas, por exemplo, além de escolas teosóficas e
escolas comerciais (isto é, que preparavam os alunos para o comércio). Associações culturais
javanesas e sundanesas também possuíam escolas próprias.
76 Para uma descrição detalhada do movimento Taman-Siswa, ver Tsuchiya, Democracy and
Leadership.
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imersão total na língua neerlandesa desde o primeiro momento.77 Naturalmente,
nas escolas Taman-Siswa, as línguas nativas recebiam um tratamento
especial no currículo. Contudo, o movimento Taman-Siswa,
prestigioso como era devido à figura de seu fundador, era apenas um
entre muitos no campo educacional nativo autônomo. Em 1942, as escolas
Taman-Siswa eram 180, com cerca de dezoito mil alunos.78 Groeneboer
estima que nesse ano todas as escolas “selvagens” juntas tinham ao todo
entre duzentos e vinte e duzentos e trinta mil alunos, o que significa que
o ensino “selvagem” em língua neerlandesa tinha duas vezes mais alunos
que o ensino público de língua veicular neerlandesa.79 Groeneboer é de
opinião que essas escolas provavelmente só produziam, em geral, alunos
com um conhecimento passivo do neerlandês, acrescentando contudo que
tal conhecimento era mais que suficiente para a maioria das funções que
poderiam exercer na sociedade colonial.
O capítulo final (pelo menos para os propósitos circunscritos deste
estudo) da saga lingüística e nacionalista da Índia Neerlandesa/
Indonésia dá-se com a ocupação japonesa do arquipélago, isto é, a partir
de março de 1942. Os japoneses já cobiçavam o arquipélago há anos,
como imensa fonte de matérias-primas que era – a Indonésia é grande
exportadora de petróleo e minérios, por exemplo. A agenda política imperial
japonesa era criar uma “Grande Esfera de Co-Prosperidade da
Ásia Oriental”, sob liderança do Japão, incluindo os países do continente
e excluindo todos os poderes coloniais europeus na região. A 17 de junho
de 1942, o governo militar de ocupação japonesa determinou a proibição
formal do uso de neerlandês no arquipélago, assim como de quaisquer
outras “línguas inimigas”, como o inglês. Essa proibição atingia
77 Groeneboer, Weg tot het Westen, p. 366. Ver página 364 para uma foto (de 1928) de Dewantara
dando aulas a uma classe na Escola Normal Taman Siswa. Professor, alunos e alunas estão
vestidos à javanesa, isto é, com sarong e kabaya.
78 De Jong, De waaier, p. 516, dá a cifra de 120.000 alunos em 1937! A pesquisa de Groeneboer,
contudo, é muito mais detalhada e confiável no que diz respeito a dados estatísticos. De Jong
comenta, contudo, que então, pela primeira vez, a Índia Neerlandesa alcançava o nível de difusão
do ensino que já era o da Índia Britânica nos anos de 1860-1870, confirmando assim o
imenso atraso neerlandês nesse campo. Ao contrário da Índia Britânica, tampouco funcionou no
período colonial uma universidade na colônia (a invasão japonesa impediu a implementação
efetiva da universidade), apesar de haverem várias escolas de nível superior, incluindo uma escola
de medicina para nativos e uma escola técnica em Bandung.
79 Groeneboer, Weg tot het Westen, p. 367.
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virtualmente todas as esferas da vida colonial, desde a educação à imprensa
falada e escrita, passando pela administração pública. Até o uso
público e privado do idioma foi proibido. Os japoneses, com isso, romperam
em grande medida o equilíbrio reinante no sistema lingüístico
matizado e complexo no qual se baseava a colônia. Onde imperava uma
grande ambigüidade aliada a um pragmatismo colonial ou nacionalista
respondendo a interesses díspares, os japoneses introduziram um sistema
formalmente dualista muito mais rígido e, por isso mesmo, bastante
menos ambíguo. Em princípio, duas línguas deveriam ser usadas, e apenas
elas: o japonês e o malaio. O japonês deveria ser agora ensinado em
todas as escolas, e eventualmente deveria se tornar a língua do arquipélago.
Esse projeto imperialista absurdamente utópico – não só o japonês
era uma língua dificílima de escrever, embora não necessariamente de
falar, como era total e completamente desconhecida da população do
arquipélago – significou na prática que o malaio se viu virtualmente
elevado, da noite para o dia, de “língua de bazar” para língua das altas
esferas públicas e privadas.80
A sanha destrutiva japonesa era formidável: não só todos os europeus
foram, famosamente, internados em campos de concentração, onde
muitos pereceriam de fome ou doença, incluindo crianças, como todo
traço de cultura e língua neerlandesa no arquipélago se tornou alvo de
destruição.81 Todos os livros escolares em neerlandês que se conseguiu
encontrar foram queimados, por exemplo, e, com exceção da Bíblia e de
alguns livros didáticos para ensinar japonês aos neerlandófonos, praticamente
nenhuma folha de papel se publicou em neerlandês durante a
guerra. Inclusive chamadas telefônicas – que eram, claro, feitas por uma
telefonista – eram controladas, e baixou-se um decreto proibindo explicitamente
o uso do neerlandês em conversas telefônicas. O clima de terror
era tamanho que só em residências particulares, e entre amigos e
familiares, ousava-se falar em neerlandês. Naturalmente, nem essa gana
avassaladora conseguiu realmente erradicar o neerlandês das ilhas. O
ensino clandestino em língua neerlandesa, por exemplo, continuou a fun-
80 Idem, pp. 439 e ss. O que se segue se baseia em Groeneboer.
81 Ver o volume editado por P.J. Drooglever, Indisch Intermezzo.Geschiedenis van Nederlanders
in Indonesië, Amsterdã, De Bataafsche Leeuw, 1994.
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cionar, embora muito precariamente, pois não existiam livros. Contudo,
o banimento virtualmente total do neerlandês da vida pública teve conseqüências
importantes e duradouras para a vida na colônia e no estado
pós-colonial que surgiria – com apoio inicial japonês – logo após a ocupação
japonesa. O pequeno número de pessoas que falava neerlandês
entre os nativos também permitiu que a língua fosse assim banida com
relativa facilidade de todas as esferas da vida pública.
Até então, como vimos, o malaio havia sido usado mais como
arma na propaganda nacionalista do que como instrumento prático. Apesar
de ter um lugar importante nos planos e projetos nacionalistas relacionados
ao futuro estado-nação indonésio, a língua da elite era mesmo o
neerlandês. Além do mais, não havia conflito lingüístico verdadeiro na
colônia porque, como vimos, os nichos ocupados pelo malaio e pelo neerlandês
na vida colonial eram muitos diferentes. A ocupação japonesa
aboliu essa diferença. Além de ocupar seu nicho tradicional de língua
franca da população e do baixo-escalão da administração colonial, agora
o malaio tinha que ocupar também o lugar do neerlandês como língua
da alta administração colonial, língua da elite e língua exclusiva de todos
os patamares do sistema escolar, da escola primária ao ensino superior.
Como até cartas endereçadas em neerlandês não podiam ser postadas, e
eventualmente letreiros de lojas e sinais em vias públicas também não
podiam mais ser em neerlandês, o malaio se viu conclamado a exercer
funções lingüísticas virtualmente inauditas para o idioma. O mais tragicômico
era que muitos membros da elite nativa e chinesa, que se expressavam
com dificuldade no idioma, foram obrigados a usá-lo extensivamente.
Naturalmente, desnecessário é acrescentar que o malaio também
se tornou a língua de comunicação por excelência entre indonésios e
japoneses.
Interessantemente, ao contrário dos pedagogos nativos, como
Dewantara, e também da administração colonial, os japoneses não viam
com bons olhos o uso de nenhum idioma local na educação, salvo o
malaio. Este e o japonês tornaram-se assim as duas únicas línguas permitidas
no ensino, além do chinês, nas escolas para chineses, o que levou
a uma simplificação e estandardização da situação lingüística no arquipélago
no nível do estado-nação colonial. Os japoneses consideravam
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que o princípio aparentemente de caráter pedagógico de usar as línguas
locais no ensino era em realidade derivado de uma política colonial de
divide et impera.82 E tinham, pelo menos em parte, razão. Em lugar de
lutar contra o apelo nacionalista em favor do malaio como língua nacional
usando o neerlandês, o governo colonial lançou mão de uma política
de intensificação do uso de um número cada vez maior de idiomas locais.
Enquanto os nativos estavam-se descobrindo cada vez mais como
“índicos” e, mais tarde, “indonésios”, o governo colonial procurava
enfatizar cada vez mais as diferenças entre os diversos povos do arquipélago,
também como medida para conter o movimento nacionalista.
Isto era particularmente claro nos anos de 1930, quando o governo nem
estimulava o ensino do malaio nas escolas – inclusive retirando a disciplina
do currículo –, nem difundia o neerlandês, mas dava, ao contrário,
um espaço maior para as diversas línguas regionais. Groeneboer indica
que já em 1865 se utilizavam cinco idiomas nas poucas escolas existentes
para nativos na época: além do malaio, usava-se o javanês, o sundanês,
o madurês e o batak, este falado em Sumatra central. Em 1900, esse
número havia crescido para treze, e explodiria no decorrer do século
XX. Assim, em 1928, o Depot van Leermiddelen ou “Armazém de Materiais
Escolares”, em Batávia, tinha livros escolares oficiais em vinte e
quatro diferentes idiomas nativos, que se tornariam trinta em 1940, embora
usados somente no ensino primário.83 As línguas – que muitas vezes
só tinham existência falada – eram estandardizadas, providas de uma
escrita oficial – sempre em caracteres latinos, mesmo que já houvesse
uma escrita nativa anterior –, e em seguida difundidas através do ensino
e da Balai Pustaka, que publicava literatura oficialmente aprovada nos
idiomas em questão. Há que se notar que o governo, exceções à parte,
não estava necessariamente respondendo a nenhuma demanda nativa -
que geralmente era por educação em neerlandês –, mas sim a uma política
própria.
A política japonesa não extirpou o neerlandês do arquipélago, mas
teve como resultado sua exclusão total da vida pública, um resultado
82 Groeneboer, Weg tot het Westen, p. 439.
83 A idéia era usar toda língua que tivesse pelo menos cem mil falantes. Ver Groeneboer, Weg tot het
Westen, p. 169, n. 78.
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com conseqüências duradouras para a vida colonial e pós-colonial, já
que a língua jamais recuperaria o status que tinha antes da guerra. Outro
fator muito importante é que os japoneses não somente baixavam decretos
e estabeleciam uma política, como se lançavam com gana ao trabalho
de implementação e execução. Assim, estabeleceu uma comissão oficial,
liderada por Takdir Alisjahbana, encarregada de criar listas de palavras
que seriam termos oficiais para traduzir termos ou conceitos neerlandeses
até então inexistentes em malaio. Além do mais, essa comissão
estava encarregada de “purificar” o malaio de termos ocidentais, substituindo
os eventuais empréstimos por termos puramente malaios. Isto não
era um mero exercício acadêmico para lexicógrafos e lingüistas, mas
tinha importância vital na ocupação e administração do arquipélago.
Como o malaio era usado em toda parte e em todas as esferas da vida
pública, do ensino e da administração, para não mencionar na imprensa
e no rádio, tudo agora tinha que ser necessariamente dito em malaio. O
malaio tinha que servir não só para falar da vida quotidiana, como também
de assuntos de governo e de ciência, tecnologia e ensino, etc. Nos
poucos anos de ocupação o malaio adquiriu, quase da noite para o dia,
grande parte do vocabulário que ainda lhe faltava para ser uma língua
moderna no modelo das européias ou do japonês. A importância disso
não pode ser subestimada. Os japoneses e seus colaboradores locais,
como Takdir Alisjahbana, foram virtualmente os responsáveis pela instauração
do malaio como idioma verdadeiramente nacional do arquipélago.
Além do mais, os japoneses, com o decorrer da guerra e a iminência
da derrota, passaram a colaborar cada vez mais com os nacionalistas, e
com a capitulação do Japão, em agosto de 1945, Sukarno e Hatta declararam
quase imediatamente a independência da República Indonésia, com
anuência japonesa. A ocupação japonesa, portanto, representou um passo
importantíssimo em direção à formação de um estado nacional
indonésio comum a todo o arquipélago.
A comissão chefiada por Alisjahbana criou mais de sete mil termos
oficiais. Foi um trabalho imenso, mas também uma contribuição
duradoura para o vocabulário da língua indonésia. Dewantara também
participou desse esforço, embora eu não tenha conseguido descobrir se o
fez durante ou depois da guerra. Uma lista de palavras em suas obras
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completas demonstra o caráter da luta por tornar o malaio uma língua
moderna onde tudo pode ser dito. A lista dá traduções malaias para termos
neerlandeses ou termos malaios de origem neerlandesa, ou então dá
explicações sobre termos em indonésio que sejam de origem ocidental, e
que se supõe não serem correntes na época. Assim, para ficarmos na
letra “A” apenas, anthropologi (malaio vindo do neerlandês), por exemplo,
é traduzido como ilmu pengetahuan tentang manusia, ou “ciência a
respeito do ser humano ou homem”.84 Naturalmente, algumas dessas traduções
não seriam duradouras. O indonésio usado pela imprensa na era
Suharto, por exemplo, está cheio de palavras de origem inglesa,
indonesianizadas ou então usadas com uma explicação do sentido em
indonésio entre parênteses.85 Contudo, o esforço de criar um idioma nacional
teve êxito, mesmo que a um alto custo. Faz parte da história póscolonial
o fato de que a rejeição total do neerlandês na década de 1950,
ilustrada pelos textos de Dewantara acima, implicou numa queda do
nível de ensino no arquipélago todo, particularmente nas universidades.
Enquanto a Índia britânica – cujo sistema de ensino é baseado em grande
medida no inglês – produz há décadas toda uma safra de acadêmicos e
cientistas conhecidos internacionalmente, a Indonésia tem um currículo
muito mais modesto nesse sentido.
Seja como for, poderíamos dizer que a construção ou leitura da
nação através do idioma é a própria base – ou tem sido até agora – do
estado pós-colonial indonésio. Ser de classe média urbana na Indonésia,
ou aspirar a participar nas instituições do estado nacional, implica ter
um domínio perfeito do idioma nacional que era, até 1998, o único permitido
na mídia e no sistema de ensino após os primeiros anos da era
pós-colonial.86 Nesse sentido, a história do colonialismo neerlandês na
Indonésia e do nacionalismo indonésio no século XX tem um caráter
84 Dewantara, Karya, p. 541.
85 Ver por exemplo os artigos em Kompas (“Sextante”, termo de origem neerlandesa), o maior
diário do país, no seu site (www.kompas.com).
86 Para relação entre língua nacional e língua local, no caso de Java e do javanês, ver o trabalho do
antropólogo J. Joseph Errington, Language and Social Change in Java, Athens/Ohio, Ohio
University Press, 1991. Errington mostra que tornar-se classe média e participar da vida nacional
implica em adquirir o indonésio como língua de uso quotidiano, embora não com a exclusão
do javanês.
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bastante peculiar, e talvez quase único. A criação do estado-nação póscolonial
não se assentou nem na volta a uma suposta tradição nativa
reinterpretada, nem na adoção de um idioma veicular europeu, mas na
criação de um patamar intermediário entre os dois, um patamar que é
produto indireto do colonialismo mas que não é um produto cultural
reconhecidamente neerlandês. Num imenso arquipélago, que mal foi
açambarcado na era pré-colonial por um estado autóctone, e cuja unidade
depende assim muito da experiência colonial e da unificação por ela
trazida, o malaio surgiu como matéria-prima ideal para a construção do
estado nacional numa colônia onde não houve projeto assimilacionista
de espécie alguma, e onde ao poder colonial só interessava neerlandesar
uns poucos.
Naturalmente, o que foi dito acima é apenas parte da história, a
outra é a de que o estado nacional, uma vez livre do colonialismo, passou
a enfrentar suas imensas divisões internas, e leituras regionais da nação
que não se coadunam necessariamente com as leituras aprovadas em
Jacarta e pelo nacionalismo que analisamos aqui. De certo modo, assim
como na época da Índia Neerlandesa, o arquipélago continua imensamente
plural e dividido, e o governo central – sucessor direto do estado
colonial – através de duas longas ditaduras, as de Sukarno e Suharto,
passou a exercer as funções do estado colonial em relação às regiões,
isto é, extração de mais-valia e controle político-militar. Nesse sentido, a
Indonésia talvez continue, mesmo na era pós-colonial, a ser um estado à
procura de uma nação. A unidade almejada por Dewantara e seus colegas
talvez seja ainda, apesar de tudo, de certo modo um objetivo algo
distante, embora menos do que o era no período colonial, já que certamente
o sentimento de habitar um arquipélago comum seja muito mais
forte hoje que então. Seja como for, uma herança neerlandesa duradoura
no arquipélago não é a própria língua neerlandesa – que hoje quase só
serve para ler leis e documentos da era colonial – mas a língua malaia
que conheceu uma difusão, expansão e crescimento talvez impossíveis
sem o colonialismo neerlandês no arquipélago, e que hoje, ao contrário
do que acontecia no período colonial, é falada como segunda língua pela
maioria da população. Mais que a arquitetura colonial, cujos exemplos
ainda abundam em Java, ou o sistema jurídico, ainda derivado do neer_
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landês, é talvez no uso do malaio como língua nacional que esteja mais
bem personificada a herança neerlandesa do arquipélago. Além disso,
hoje, o sonho e projeto pedagógico para a nação índica de Surya Ningrat/
Dewantara está concretizado, se não nos seus mínimos detalhes, pelo
menos no seus aspectos principais. Em parte graças ao pedagogo javanês,
poderíamos dizer que o malaio é, paradoxalmente ou não, o grande e
duradouro legado holandês no Sudeste Asiático.

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